Era assim uma velha brincadeira de infância que aprendi com meu pai. Numa sátira do que foi o movimento hippie - que pregava a paz e o amor em meio a uma putaria básica - nós fazíamos o símbolo de paz e amor com o dedo indicador e o médio e outra pessoa colocava seu dedo médio entre aqueles que formavam o símbolo e dava uma balançada com o tal dedo num esquema do tipo entra e sai. Um fazia o gesto e falava:
- Paz e amor!
O outro vinha e botava o dedo no meio e brincava:
- Com um pouquinho de sacanagem!
E a molecada se divertia com essa e tantas outras brincadeiras que os adultos nos ensinavam, em geral, quando estavam bêbados. Vai daí que me lembrei hoje, durante o almoço, dessa brincadeira dos tempos de outrora e é o motivo da lembrança que me fez vir aqui pra escrever esse texto.
Com alguma frequência eu vou a Ipanema dar aulas. Desde 2006 tenho umas turmas por lá. A filial do curso fica na rua Garcia D`Ávila, uma das mais caras da cidade, que concentra lojas voltadas para produtos de alto luxo e para um mercado consumidor de alto poder aquisitivo. Estão instaladas alí três unidades do grupo H. Stern, a Louis Vuitton, a Mont Blanc, uma loja exclusiva da Adidas, entre outras, cada uma mais cara do que a outra.
Atento ao contraponto, às contradições espaciais, há muito descobri que ali na Garcia, em meio a toda aquela aura de sofisticação e aquele ar muito blasé, há uma quadra que parece muito mais com o Subúrbio do que com a Zona Sul carioca. Fica entre as ruas Redentor e Nascimento Silva. Ali, ao invés de lojas sofisticadas, o que se vê é uma farmácia, um pé-sujo clássico - daqueles com dono português e gerente cearense, e eu escreverei sobre ele qualquer dia - e um estabelecimento que é meio bar e meio restaurante: o Paz e Amor.
O Paz e Amor serve um PF (prato-feito) respeitável, tem um garçom - o Marquinho - que é dos melhores e além disso, de todos os lugares onde já almoçei na vida, é lá onde o pedido chega mais rápido. Meu PF nunca demorou mais do que dois minutos pra ser servido. E bem servido.
Mas nem tudo são flores. Quem chega por volta de uma da tarde naquela esquina provavelmente fica de pé esperando um lugar pra sentar e almoçar. Faltam lugares? Não! Em todas as vezes que fui ao restaurante e vi gente esperando de pé por um lugar, havia mesas e cadeiras para que eles pudessem sentar-se. Explico.
Quando escrevi que o Paz e Amor era um estabelecimento meio bar e meio restaurante, era exatamente isso o que eu queria dizer. A metade do espaço é atendida pelo PF, servido pelo bar, já a outra metade fica com a exclusividade do serviço do restaurante. Tudo é diferente. Tudo é separado. Eu diria, mesmo, que tudo respeita a uma ordem de segregação socioespacial ali dentro.
Na primeira vez que fui ao Paz e Amor, estava sozinho e não conhecia o esquema da casa. Sentei-me em um lugar reservado aos clientes do restaurante e quando fui atendido pelo garçom, de gravata borboleta e tudo, pedi o cardápio e, por não ter encontrado o que procurava, perguntei pelo PF. Ele me apontou um lugar numa mesa onde outros três operários almoçavam.
- PF é só naquelas mesas alí, ó. Por agora só temos aquele lugar na mesa com três.
Fui pra lá e, enquanto outros aguardavam uma vaga de pé do lado de fora, calei-me com a boca de feijão. Mas não me conformei com aquele modus operandi de restrição, de segregação. Depois de mais algumas poucas visitas, prometi não voltar mais lá. Passei dois anos sem pôr os pés no Paz e Amor.
Dia desses saí do horário com dois amigos e eles tinham marcado o almoço lá. Eu já tinha almoçado mas fui com eles. Passava das duas e a briga por lugares já tinha acabado há tempos. Pedi apenas um suco e papeamos. Relembrei o bom PF que a casa serve. Hoje, saindo do trabalho às 13:30, com uma fome visceral, não resisti ao Paz e Amor e tratei de encontrar um canto pra pedir o meu PF.
Pedi e o prato se fez presente na minha mesa em quarenta e cinco segundos. Tonto com aquela rapidez, acabei esquecendo de pedir uma bebida. Estiquei o braço mas o garçom que me atendeu estava dentro do bar buscando pedidos de outros fregueses. Olhei para o outro garçom - aquele de gravata borboleta que atende só no restaurante - e fiz um sinal. Ele só apontou pro Marquinho lá dentro do bar e disse:
- É só com ele...
Até nisso a casa separa as coisas. Se eu pedir um prato de vinte contos posso ser atendido numa mesa com toalhas limpas por um garçom que usa gravatas borboletas. Mas se eu pedir um PF de oito contos, sou atendido numa mesa sem toalhas e suja de arroz com feijão. O garçom que não me atendeu continuou olhando as notícias do esporte na televisão como fazia quando eu o chamei.
Saí obviamente irritado e certo de que a casa se enquadrava perfeitamente na minha velha brincadeira de infância. Paz e Amor, sim. Mas com um pouquinho de sacanagem.
Até.
4 comentários:
sensacional...
Luis campos - the godfather
Fala Diego, seu texto esta muito engraçado. Na hora que aconteceu deve ter irritado mesmo, mas contando agora é engraçado. o final ta demais. "É só com o marquinhos", e o outro garçom que não te atendeu continuou olhando as notícias do esporte na televisão huhauhauhahuahu. Tudo a ver com o título mesmo!!!
Abraços, Sandro
Rico, sensacional nada. Que bobagem! Abraços!
Sandrinho, tremendo filhodaputa aquele caboclo. Abraços!
Cara,
Em vários bares e restaurantes do Rio existe estes garçons de mesa. É simplesmente irritante! O lugar pode estar parcialmente cheio, com serviço demorado e o garçon na dele olhando TV e marcando as mesas que lhe cabem e vendo TV.
Lamentável!
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