terça-feira, junho 02, 2009

A MÍDIA E O DIMENSIONAMENTO DAS TRAGÉDIAS

O controle da circulação das principais informações veiculadas em todo o planeta pertence a um número muito restrito de agências de notícias. Entre elas, destacam-se grupos como o conglomerado anglo-canadense Thomson Reuters, o grupo francês AFP, a agência espanhola EFE, o grupo norteamericano UPI além da BBC e outras poucas agências de grande porte. Muitos jornais apenas reproduzem o que essas agências divulgam. Suas notícias são capazes de influenciar decisões financeiras, empresariais e até decisões políticas e governamentais. Não resta dúvida de que essa capacidade de controlar a produção e a circulação das notícias confere grande poder a essa mídia que, de forma quase invariável, a utiliza segundo seus anseios e seus interesses.

E um dos diversos exemplos desse uso parcial da informação pelas grandes agências de notícia é dimensionamento das tragédias. Grandes tragédias, em geral, envolvem a perda de várias vidas, ou pelo menos de uma vida. Então, a questão que se exibe é: como dimensionar uma tragédia? Será pela quantidade de vidas perdidas? Ou pela "qualidade" dessas vidas?

Do ponto de vista da quantidade o mundo já viveu diversas tragédias. O holocausto, as grandes guerras, a epidemia AIDS na África, as tsunamis são grandes tragédias. O Stalinismo, com seu saldo de milhões de mortos, também gerou uma tragédia. O massacre secular dos indígenas americanos, que foi um verdadeiro holocausto sem direito a lista de Schindler, também foi uma tragédia. Todas com muitas mortes. Do ponto de vista da "qualidade", o mundo também já viveu algumas tragédias. Só no século 20, o assassinato de pessoas como Francisco Ferdinando, John Kennedy, Indira Ghandi e Yitzhak Rabin, entre outros, mudaram o curso da história, seja em âmbito nacional ou internacional.

Eu, que sou um humanista, não pretendo estabelecer comparações entre tragédias atribuindo maior ou menor valor a elas. Pretendo, apenas, demonstrar como a grande mídia valoriza demais determinadas tragédias enquanto despreza outras que envolveram tantas vidas quanto as primeiras. Ou seja, que a mídia, de modo geral, dimensiona as tragédias muito mais pela "qualidade" das vidas perdidas do que pela quantidade. Os exemplos que temos a seguir, mais ou menos recentes e típicos da imprensa brasileira, exemplificam bem o que estou afirmando.

Dois estados Brasileiros viveram tragédias recentemente, associadas ao excesso de chuvas, ou seja, a catastrofes naturais, além de problemas de infraestrutura urbana. São eles, o Estado de Santa Catarina e o estado do Piauí. A cobertura dada às duas tragédias, de dimensões semelhantes, é absolutamente discrepante. Santa Catarina esteve nas capas dos jornais durante semanas na época em que se abateu a tragédia sobre o estado. Um destaque muito menor foi dado aos eventos que assolaram o Piauí, onde além das mortes, muitas pessoas ficaram desabrigadas e diversos povoados simplesmente desapareceram. A razão para essa cobertura diferencial está na "qualidade" da população atingida.

No Piauí, os mortos e desabrigados fazem parte de um Brasil que não é central, que é mulato e mestiço, descendente muito mais de índios e africanos do que de brancos europeus. São os nordestinos pobres que levam o governo a gastar dinheiro com programas assistencialistas como Bolsa Família, Fome Zero, ProUni etc., e não ter verbas para construir um museu Guggenheim em São Paulo ou no Rio de Janeiro. São os nordestinos que tem parentes superlotando as metrópoles do sudeste onde são vistos apenas nos canteiros de obras, nas portarias ou nos departamentos de manutenção e limpeza das grandes empresas. Ou seja, quem morre no Piauí é gente menos importante, cuja morte comove menos a classe média metropolitana que lê jornal e vê telejornal, é gente que não é notícia.

Em Santa Catarina, os mortos e desabrigados fazem parte de um Brasil central, de um povo que é branco, em sua maioria, louro de olhos claros, descendente de europeus, vistos como os únicos capazes de civilizar o Brasil, a esperança redentora de uma nação forjada com base na escravidão e no massacre de milhões de índios. São os catarinenses, que podem ter entre seus mortos uma menina cuja beleza se enquadra nos rígidos padrões da moda internacional e que a fatalidade impediu de se tornar uma nova super top model. São os catarinenses pobres e os muitos catarinenses de classe média e alta que tiveram suas vidas arruinadas por construir em áreas de encostas ou vales fluviais desmatados tornando-se vítimas dos deslizamentos de terra e do transbordamento de rios assoreados.

Para mim, o valor das duas tragédias é o mesmo. Lamento por todas as pessoas e por todo o sofrimento delas. Minha crítica é à imprensa que, por se identificar muito mais com os catarinenses do que com os nordestinos e saber que a identificação geral de seu público é a mesma, veste-se de todos os seus preconceitos e retrata de forma desproporcional tragédias semelhantes.

Quando se trata da morte de crianças a comoção das pessoas é, em geral, maior do que quando se trata de adultos ou, principalmente, de idosos. Mas o tratamento dado a morte de uma criança pobre, moradora de favela por exemplo, é sempre menos dramático do que ao que é dado a morte de uma criança rica ou de classe média e alta.

Se a polícia troca tiros com bandidos em uma favela e um dos tiros mata uma criança, a notícia virá, mas acompanhada daquela conotação de senso comum, da ideia de violência banalizada, de guerra urbana, de traficantes armados contra polícia mal treinada, mal remunerada e, por vezes assassina etc. Em pouquíssimo tempo a manchete desaparece. O mesmo vale para os casos de violência dos pais com os filhos, pobres, é claro.

As proporções que tomam os casos de violência contra crianças de classe média e alta são muito maiores. O caso de Isabella Nardoni, em que muitos fatos levam a sociedade a crer que a menina foi jogada pela janela do apartamento pelo próprio pai, passou pelo menos dois meses sendo acompanhado de perto pela imprensa brasileira e as novidades processuais ainda são discutidas com a maior presteza. Isabella e outras meninas de classe média e alta, com suas fotografias estampadas nos telejornais, lembram os filhos da classe média e alta de todo o país, o que os comove com mais facilidade os que compram jornais e assistem telejornais. Elas são mais notícia do que as crianças pobres de favela.

Para mim, o valor das duas tragédias é o mesmo. Lamento por todas as crianças e por todo o sofrimento delas. Minha crítica é à imprensa que, por se identificar muito mais com a classe média do que com moradores de favela e saber que a identificação geral de seu público é a mesma, finge, quase sempre, uma tristeza pela morte das crianças de favelas - quando, em verdade, comemora menos um recruta do tráfico em um futuro próximo - e retrata de forma desproporcional tragédias semelhantes.

Um acidente aéreo sempre tem muito mais repercussão do que os acidentes rodoviários. Claro, eles são mais raros e quase nunca deixam sobreviventes, é verdade. Mas não é pela quantidade de mortos que eles ganham notoriedade maior. Os acidentes rodoviários em conjunto matam muito mais do que os acidentes aéreos. Mas há, quase sempre, grande diferença social entre quem morre nas estradas e quem morre em acidentes aéreos.

Os editores que selecionam o que se noticia nos jornais e telejornais, quando viajam para locais distantes, o fazem de avião ou de ônibus? Quando ocorre uma tragédia aérea de grandes proporções, uma das informações mais buscadas pela imprensa é a lista com os nomes dos passageiros. Há passageiros ilustres? Políticos? Empresários? Artistas? É com essa classe que os formadores de opinião se identificam, e não com as classes que frequentam os ônibus de viagens nas estradas brasileiras. Quando, por exemplo, ocorre um acidente envolvendo dois ônibus numa estrada, com mais de 50 mortos, não há a mesma cobertura. Geralmente não há ilustres para procurar nas listas de mortos. Em pouquíssimo tempo o caso é esquecido.

Para mim, o valor das duas tragédias é o mesmo. Lamento por todas as vidas perdidas e por todo o sofrimento dos familiares. Conheço pelo menos duas pessoas que perderam familiares no mais recente acidente aéreo. Minha crítica é à imprensa que, por se identificar muito mais com os passageiros de avião do que com os de ônibus e saber que a identificação geral de seu público é a mesma, atribui maior valor ao desastre aéreo, e retrata de forma desproporcional tragédias que ceifam quase o mesmo número de vidas.

Esse mecanismo que dimensiona tragédias não foge, portanto, ao mesmo mecanismo comercial de sempre onde o produto, no caso, é a informação e a sua venda está submetida ao tratamento dado à notícia e a relevância dela para o seu público alvo. É assim também quando morrem adolescentes, um da zona sul e outro do subúrbio; quando carros são roubados, um na zona sul e outro no subúrbio; quando prédios são invadidos, um na zona sul e outro no subúrbio etc., etc., etc...

2 comentários:

Daniel disse...

Diego,

Concordo com vc em gênero, número e grau, principalmente, na cobertura da mídia quanto à violência urbana carioca.
Já escutei inúmeras vezes, inclusive na casa de meus parentes, quando morre um jovem na favela, dizem: "Que bom, menos um pra virar bandido".
A verdade é que a nossa classe média (e incluo minha família e grande parte dos meus amigos) só se importam com morte na favela quando atinge o filho (ou parente) de seu empregado.
Grande abraço,
Daniel Liberto

Diego Moreira disse...

Daniel,

Conheço pessoas dessa classe média, do tipo que obriga os empregados a vestir uniformes e tal, que não se importam nem quando morrem os filhos dos seus empregados, e só não descontam-lhes a falta do dia do enterro por questões legais.

Seja sempre bem chegado, camarada.
Abraço!