domingo, dezembro 21, 2008

SOBRE A SABEDORIA POPULAR

Em fevereiro desse ano eu tinha postado aqui no Geografias Suburbanas, uma receita da mais alta malandragem que mamãe utiliza quando precisa corrigir alguma vacilada com o sal num dos seus refogados. O lance é - clique no link acima e leia o texto! - o seguinte: se caiu sal demais, coloque a tampa da panela por cima dela de maneira que não a feche completamente e - veja a foto! - coloque um pouco de sal por cima da tampa. O sal puxa o excesso.

O que ocorre é que essa sabedoria dos antigos - minha mãe aprendeu a malandragem do sal com minha avó e sabe-se lá que caminhos esse conhecimento percorreu até chegar aqui - me emociona profundamente. Isso porque trata-se de uma prática cultural. Essa forma de transmissão dos saberes - de boca em boca - cria mitos, verdadeiras lendas que crescem e se vivificam saltando de mente em mente no imaginário do povo.

Já disse num texto anterior que eu e minha senhora fizemos as malas e baixamos aqui no Engenho da Rainha, na casa de mamãe. E um hábito de mamãe, que estamos absorvendo, é varar madrugada adentro apenas a conversar. E eu venho redescobrindo essa sabedoria profunda que mamãe abriga e revela nesses momentos - mamãe gosta de falar no silêncio da madrugada. Preserva com precisão e transparência cristalina alguns dos detalhes mais profundos das histórias que conta. Inventa e reinventa as partes mais opacas, como se faz em toda tradição oral respeitável. E ela é, sem se dar conta, uma escola dessa sabedoria popular.

Num desses dias de conversa varando a madrugada, mamãe falava das simpatias que ela fazia para mim e para minha irmã quando éramos crianças - a temática infantil está em alta na família. Lembro que, num momento da conversa, em menos de cinco minutos mamãe exibiu uns três ou quatro mitos, contextualizados com narrativas absolutamente verídicas, sobre o cuidado com crianças. Eu, que não tenho memória tão firme nas altas madrugadas, lembro apenas de um, em que o personagem da narrativa verídica era eu mesmo.

Quando eu nasci, mamãe ainda trabalhava, pegando cedo no batente. E nos primeiros anos eu dormia como um anjo durante o dia e passava a noite inteira acordado. Era o único momento em que eu via minha mãe. E queria brincar.

Eu estava "virado", como diem os mais velhos. Trocando as noites pelos dias. Mamãe, que sentia saudades dos filhos, até gostava de brincar comigo, mas depois das três da manhã e sabendo que o galo cantava às cinco, o ânimo já não era tão grande quanto o sono que vencia a batalha gloriosamente. O que fazer? É aí que entra a sabedoria dos mais velhos.

E essa sabedoria diz que quando se coloca uma tesoura debaixo do travesseiro de uma criança "virada", ela em pouco tempo "desvira", e volta a dormir durante as noites e ficar acordado durante os dias. É recomendável que não se utilize tesouras de pontas afiadas. Evitar acidentes é fundamental, por isso as tesouras escolares são mais apropriadas. Por que funcionaria? Perguntar isso já significaria tentar impor uma análise científica em algo que deve ser tratado e cultivado como lenda ou mito. E que deve se reproduzir como tal. Cientifizar a coisa é deturpá-la, destituí-la de sentido.

E o mais bonito de tudo: mamãe diz que deu certo.

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O Geografias deseja um Feliz Natal aos Suburbanos Transeuntes!
Forte Abraço!

Um comentário:

. fina flor . disse...

querido Diego,

hoje passo somente para deixar um beijo de natal com perfume de rabanada e desejo de um "dois mil e love" repleto de gratas surpresas :o)

Beijos,

MM.