sexta-feira, fevereiro 19, 2010

E VOVÓ OCÉLIA FOI OLÓ

Acordei na quarta-feira de cinzas recebendo uma das piores notícias familiares de minha vida:

- Diego, a sua avó faleceu.

Cumprimentei a dama da foice que subtraiu o sopro de vida da minha velha avó, a caçula dos tantos que nem sei quantos filhos que o seu Deocleciano Porto teve no povoado de Rio Seco, em Bacaxá, o segundo distrito do Município de Saquarema, na região dos Lagos do Rio de Janeiro.

Tomei as providências imediatas para partir rumo ao Engenho da Rainha a fim de encontrar papai e com ele subir a serra para Nova Friburgo, onde vovó - neta de um português com uma índia Tamoio da região de Rio Seco - foi oló.

Fomos. Muita gente saiu de vários cantos do Estado do Rio de Janeiro para estar lá na última hora. Da capital, de Macaé, de Rio das Ostras... Minha irmã, sabe-se lá porque essas coisas acontecem, já estava em Nova Friburgo, no sítio do tio do marido, onde passou o carnaval.

Na viagem de ida, durante o velório e o sepultamento, e durante a viagem de volta, tive tempo para refletir sobre o modo de vida que vovó escolheu. Para a maioria das pessoas, ela era o que se chama de "cabeça-dura", uma irredutível, uma inflexível em suas opiniões, posições e vontades. Vovó não era fácil de conviver. Pedra 90, só enfrenta quem aguenta. Explico.

Nos últimos anos, vovó ficou diabética além de conviver com os mais diversos problemas de saúde que exigem uma vida muito regrada e com dietas rigorosas. Mas vovó gostava muito de comer. E esse muito deve ser entendido na mais profunda acepção da palavra. O negócio dela era cozido, rabada, feijoada, e outras comilanças capazes de derrubar homens de estiva.

Até aí tudo bem. Era só beliscar um pouquinho "pra não aguar". Mas pra vovó, comer bem significava armar pratos de fazer qualquer um corar de vergonha. E ela não abria mão. Recusava qualquer advertência. Enchia o prato de feijão com miúdos e não deixava panela vazia. Seu pensamento era simples: fazer aquelas dietas seria um sofrimento que prolongaria uma vida em sofrimento. Era preferível ser feliz no tempo que tinha.

E o que eu fiquei pensando sobre isso é que vovó não tolerava que alguém tomasse decisões sobre sua vida por ela. Ela queria poder decidir livremente o caminho a seguir, ainda que este fosse prejudicial à sua saúde.

Ninguém sabe qual é a melhor maneira - entre todas as maneiras possíveis - de se viver a vida. Mas é certo que uma vida livre é melhor do que uma vida conduzida pela vontade dos outros. Ter a vida conduzida pela vontade dos outros é a pior coisa que pode acontecer a alguém. Exemplifico.

Trabalho com vestibulandos. Já conheci muita gente que tentou passar para medicina por que os pais sonhavam com isso. Mas, no fundo, os caras sonhavam em fazer Oceanografia, Filosofia, Ciências Sociais, Música com graduação em Fagote, Oboé ou Tuba etc.

E eles não seguiam os passos que desejavam para seguir os passos sonhados pelos seus mais velhos, o que poderia, no futuro, ser motivo de profunda frustração. Afinal, deve ser doído demais chegar ao fim da vida com a convicção de que tudo o que se fez ao longo de tantos anos não valeu para si mesmo.

E isso vai muito além de uma escolha de profissão. Vale para tudo.

E vovó só fazia o que achava que tinha que fazer. Ninguém pode saber se acertou em todas as escolhas feitas ao longo de uma vida. O edifício da dúvida sempre existirá. Teria sido melhor se tivesse seguido outro caminho? Em certas situações é impossível saber, mas entre a escolha livre e a arbitrariedade alheia, a escolha livre é a melhor opção.

Aprendi com a sabedoria do pensamento africano que quando a morte leva o corpo nós permanecemos vivos enquanto somos lembrados por nossos filhos - a maior obra que um homem pode produzir - sejam eles biológicos ou do coração.

Eis, aqui, vovó, na última vez em que esteve cercada por todos os seus netos.


Dedico esse texto a Daniel, meu filho, o único bisneto que ela pôde ter em vida. Ele saberá muito sobre sua bisavó e a manterá viva na lembrança de seus filhos e netos, que desejo que façam o mesmo com seus filhos e netos.