quarta-feira, março 21, 2007

RESPEITO SE APRENDE EM CASA

Meu velho sempre foi um pai severo. Bastante exigente mesmo. O tempo passa e eu, às vezes, me surpreendo em plena recordação dos tempos de infância, quando ele me passava as noções básicas da boa educação. Cada mensagem era a mim transmitida com a intensidade de quem está proferindo as últimas e mais importantes palavras da sua vida. Era pra ser claro, pra que não houvesse engano na compreensão do que ele me dizia.

Uma das lições mais importantes que aprendi rezava que não se deve, nunca, entrar na casa de alguém sem pedir a devida licença. Nunca mesmo. Levei, e levo, isso tão a sério que, em hipótese alguma, quebro esta regra. Ás vezes faço isso até onde já é desnecessário, casa de gente da família, onde sou, realmente, de casa. Não perco essa mania. E nem quero perder.

No início de 2004, fui pela primeira vez à quadra do Império Serrano. Uma emoção profunda. Apenas um parêntese antes de continuar essa história. Sou mangueirense, filho de pais mangueirenses e neto de um mangueirense tradicional, amigo pessoal do grande poeta da morte, Nelson Cavaquinho, como contei, em dezembro de 2006, no primeiro texto desse blog. Mas, mesmo carregando a Verde-e-Rosa no peito, tenho uma admiração enorme pelas escolas mais tradicionais, como a Portela, o Estácio, o Salgueiro e, claro, o Império Serrano.

Lá estava eu na quadra da escola que relembrava um enredo que estava completando 40 anos. Aquarela brasileira, que desfilou em 1964, com o samba de ‘um dos mais perfeitos poetas’, Silas de Oliveira. Eu, a patroa e minha mãe, marcamos com o Tito, irmão mais velho da minha digníssima, para nos encontrarmos às 9 horas da noite, na porta da quadra. Ansioso, fiz com que chegássemos às oito e meia.

Pra chegar lá, saímos da minha antiga casa no Engenho da Rainha e pegamos o 908, que faz o trajeto Bonsucesso-Guadalupe. Do ponto na Av. automóvel clube, passamos pelo viaduto no fim da Estrada velha da Pavuna, rua onde eu morava e caímos na rua Silva Vale, já em Cavalcante. Seguindo essa rua chegamos em Engenheiro Leal, depois de passar pela esquina com a rua Laurindo Filho, a tradicional rua da feira, pertinho da Igreja de São Pedro. Na Laurindo Filho fica o ponto final do 311, que faz o trajeto Centro-Cavalcante. Tudo paralelo à linha do trem no trecho que vai de Thomas Coelho até o Magno. Atravessamos, por cima, essa linha através de um viaduto que liga esse lado do subúrbio ao outro lado, o de Cascadura e Madureira. Dali, em cinco minutos, depois de passar por baixo do viaduto Negrão de Lima, chegamos na porta da quadra.

Com os portões ainda fechados, rolava uma kizomba lá dentro. Um batuque, que parecia muito bom. Por uma pequena brecha aberta, vi, do nada, surgir um Wilson das Neves, de pé sobre a cadeira, em êxtase, quando, pra finalizar a festa, o povo cantava Estrela de Madureira. Senti que o coração veio na boca. Quase vomitei de tão comovido.

Tito chegou com a esposa e avisou que a quadra só abriria às 10 da noite. Ele tem uns conhecimentos com o pessoal da escola. Então fomos comer alguma coisa e tomar uma cerveja num boteco ali pertinho da quadra.

Voltamos, compramos a entrada e aguardamos a abertura dos portões. Pisei emocionado naquele chão de tantas glórias, porém uma agonia surgiu. Não via ali, de imediato, alguém a quem eu pudesse pedir licença pra entrar no recinto. Cinco ou seis passos depois, vi no lugar mais alto da quadra, uma enorme imagem de São Jorge. Mirei no santo e falei pra dentro mesmo.

- Saravá, Ogum! Peço licença pra chegar no seu terreiro.

Do lado direito, vi o camarote dos compositores, que recebe o nome de Roberto Ribeiro, uma justa homenagem ao maior cantor de samba de todos os tempos (minha opinião) e defensor incondicional do verde-e-branco da escola, a qual seguiu até sua morte precoce. Escrevo este texto ouvindo a brilhante voz desse gigante.

O ambiente familiar em nada se assemelhava com o ambiente das outras quadras que se transformavam em boates naqueles idos de 2004 e cujas entradas custavam, em alguns casos, até trinta reais. Paguei cinco pratas, quase simbólicas, pra entrar no Império nesse dia. Uma festa pra comunidade.

Mesmo com a bênção espiritual de Ogum, senti falta de me reportar a alguém entre nós (os desse mundo) que pudesse me conceder a devida licença pra chegar naquele samba. Olhando pra esquerda vi uma senhora que ‘não dorme de touca e nunca se atrapalha’. Falei com o Tito.

- Meu irmão, preciso ir lá falar com ela. Se não for, não vou me sentir à vontade na casa.
- Tranqüilo! Eu te levo lá! Eu te levo lá! Quer ir agora?
- É pra ontem!

E a patroa sentindo a importância do momento pediu pra ir também. E fomos todos.

Chegando pertinho do camarote da velha guarda, onde ela estava, eu quase tremia. Não acreditava que iria falar com a História Viva do Samba. E chegamos. Tito dirigiu-se a ela apresentando-nos dizendo que era a primeira vez que íamos à quadra. Tomando a frente, beijei-lhe as mãos, no que fui seguido por minha senhora e minha mãe. Depois disse com a voz embargada:

- Vim aqui pedir licença pra chegar na sua casa. Posso?

E ela, com a voz ‘bastante rouca’, respondeu:

- Ah, meu filho! Fique à vontade. A casa é sua. Meu camarote também está à disposição de vocês.

Ela disse isso usando um gestual com as mãos como quem diz: pode entrar...

E eu, sem saber o que responder, fiz apenas um gesto agradecido denotando que não queria incomodar. Já estava quase saindo quando consegui soltar a voz e respondi:

- Muito obrigado, Tia Eulália! Muito Obrigado!

Depois desse primeiro e último encontro, sempre vou me sentir em casa na quadra imperiana.

Um abraço solidário!

sábado, março 17, 2007

UM ELOGIO À SINCERIDADE

Certos professores falam o que bem entendem sobre seus alunos. Não perdoam as verdadeiras asneiras que eles, às vezes, são capazes de pensar, e o que é pior, dizer, sem o menor receio, pra todo mundo ouvir. Espalham as ‘pérolas’ expondo os aprendizes à execração pública sem preocupar-se com as possíveis conseqüências de tal ato.

Se um estudante sentir-se no direito de reclamar, a conseqüência pode ser um problema com a instituição que emprega o professor. Um emprego em jogo. Uma cabeça em jogo.

Mas nada pode ser pior do que perder pra sempre um aluno. Um professor pode ser adorado por centenas, milhares de estudantes, por conta de suas aulas! Porém, se ele perde a atenção e o carinho de um só aluno, que se sinta ofendido ou magoado com a esculhambação promovida contra si pelo mestre, o sujeito não merece, na minha opinião, o título que carrega.

Muito mais do que reprodutor do conhecimento, o professor deve cativar o aluno, dar-lhe auto-estima e apoiá-lo no processo de crescimento. É aí que reside o princípio fundamental da educação, ao meu ver.

Então, hoje, venho fazer um elogio à sinceridade. Do aluno. E não do professor, que tem a obrigação ética de guardar certas reflexões para si e expô-las, no máximo, em seu papo de esquina, de botequim, e, ainda assim, só depois de bêbado. Sóbrio, nunca!

Em dia de teste ou prova, o professor, mais do que nunca, transforma-se numa estrela. É o mais cobiçado dos seres da Terra. Extremamente comum ouvirmos frases, sinceras, como as que ouvi nesta última quinta-feira, quando eu apliquei teste:

- Professor, hoje você está, especialmente, bonito!

Um comentário lisonjeiro buscando simpatia, embora incompatível com meu aspecto de ogro, cabelos sem cortar desde o Natal e cara amassada às 07:45 da manhã. Revela um aluno tranqüilo porém perspicaz, que estudou mas quer se garantir por todos os lados.

- Você quer um bolinho de chocolate Ana Maria?

Uma tentativa sutil de comprar o professor, especialmente um gordo como eu, mas que não chega a ser um ato mau caráter, como podem pensar. Este também está se cercando mas deve ter estudado menos já que está arcando com um prejuízo pra se dar bem na avaliação.

- Mestre! Eu te amo, meu querido! Você é o melhor professor do mundo!

Revela um sujeito completamente desesperado. Não sabe patavina da matéria e parte pro apelo emocional.
Um ser sincero.

Embora pareçam sonsas e dissimuladas, essas frases transparecem a mais profunda sinceridade.

Mas nada disso foi mais sincero do que a frase proferida por um deles, durante o teste. Embora a avaliação esteja clara, sem nenhum erro de digitação, com idéias precisas e tudo mais, tem sempre aquele aluno que te chama na mesa pra perguntar qualquer coisa. E eles não são poucos. Como, em certa turma, os chamados já eram muitos, e nenhum foi atendido, para evitar novos chamados, resolvi dirigir-me à turma inteira pra dizer que não iria à mesa de ninguém. Utilizei a seguinte alegoria:

- Queridos, durante o teste esqueço tudo. Não vou responder nada pois não sei nada. Depois eu aprendo novamente.

E o aluno, na lata e sem perda de tempo, emenda:

- Eu também!

É o mais sincero que já conheci até hoje.

Um abraço, sincero, do tamanho do Subúrbio!

sábado, março 03, 2007

CARNAVAL AO MOLHO SHOYU

Retorno hoje, meus raríssimos mas bons leitores, pra dar continuidade aos meus relatos sobre meu carnaval no Estado de São Paulo.

Depois de uma visita breve à belíssima Estação da Luz e ao Museu da Língua Portuguesa, essa uma exigência da patroa, seguimos de trem pro terminal rodoviário da Barra Funda, onde tomamos o ônibus para viagem de seis horas e meia, em direção a pequena e pacata cidade de Penápolis, que fica na região noroeste do estado e a uns quarenta e cinco minutos de Araçatuba.

Chegamos na noite de sábado, às oito horas debaixo de uma chuva convectiva daquelas!
Segundo consta, o dia de sábado foi muito quente em Penápolis. Com a intensa evaporação provocada pelo aquecimento, o vapor d´água se condensa ao atingir altitudes elevadas na atmosfera, portanto, resfriando-se. A condensação pelo resfriamento gera a chuva que vem em pancadas. A típica chuva de verão.

A cidade é realmente pequena. Possui sessenta mil habitantes no máximo, uma Igreja no centro (como qualquer cidade do interior), pequeno comércio local, raríssimas agências bancárias, um museu, dois ou três clubes e mais nada. Aliás, pra ser fiel na descrição, é preciso registrar que a cidade é abarrotada de sorveterias. Uma colada na outra. Um troço esquisitíssimo. A Tijuca, com quase o dobro de habitantes, não chega nem perto da quantidade de sorveterias que encontramos por lá. Definitivamente incompreensível como tantas micro-empresas do mesmo ramo conseguem sobreviver num nicho de mercado tão restrito, limitado.

A atividade econômica predominante na região é o cultivo de cana de açúcar, pra produção de álcool ou até mesmo o açúcar, quando o preço deste produto está em alta. Muitas usinas marcam a paisagem da região. Durante a viagem de ônibus consegui observar na estrada a estratégia de cultivo dos produtores. As terras são divididas e em cada porção a cana é plantada em uma época diferente. Isso faz com que sempre haja um espaço limpo pra plantar e, o melhor, sempre haja cana pra colher. Assim a produção não pára nunca.

Em algumas propriedades aparece, também, o café. Com o excelente latossolo vermelho, originado da decomposição da estrutura rochosa arenito-basáltica, o famoso solo de terra roxa, a produtividade do café é garantida, mesmo com o uso das mais simples técnicas de manejo de solo. Esse revezamento cana / café evita o empobrecimento precoce do solo pela exaustão de minerais. Mas a cana predomina gloriosamente nas terras da região. Promissão, Lins, Avanhandava e Penápolis são repletas de terras cobertas por cana.

Mas isso justifica um carnaval regado a cachaça e não ao molho shoyu, como no título. Explico.

O trocadilho do molho shoyu está no fato de eu ter ido pra uma casa de japoneses. Por volta de 1943 o senhor Yoshio Abe chegou ao Brasil, fugindo da ofensiva militar americana que arrasava o seu país. Ele que é descendente de uma linhagem nobre de samurais que lutaram na resistência contra o fim do Xogunato Tokugawa, veio acompanhado da mulher e de um filho pequeno e se estabeleceu em Penápolis trabalhando com agricultor, no cultivo de café. Hoje, ao completar 100 anos de idade, e há quase dez anos sem a companheira, seu Yoshio vive no Rio de Janeiro com dois dos seis filhos: Naguiça e Tiaque. Com isso foi obrigado a se desfazer de uma incrível coleção com mais de 500 orquídeas, que eram cuidadas uma a uma pelas mãos do japonês. Ele doou aos amigos da cidade as plantas que podem custar até 100 reais cada uma.

O Dr. Augusto Tiaque Abe, filho mais novo do seu Yoshio, é casado com uma das tias de minha senhora. E esse querido casal nos convidou pro carnaval em Penápolis. Em busca de repouso, aceitamos o convite imediatamente.

Mas... e o carnaval de Penápolis?

Queridos: não tinha nada! Rigorosamente nada. Mas pra continuar sendo fiel, tenho que mencionar uma bazófia que rolou por lá. Bazófia que eu considero como um nada! Vejamos...

Domingo. Quase nove horas. Faltava pouco pra começar o desfile da Estácio de Sá. Eis que a patroa, a tia, os primos... todos me chamam pra uma voltinha pela cidade. Não podia recusar mais nada pois até aquele momento eu não tinha participado de nenhuma saída em grupo. Fiquei de fora em todas as oportunidades, negando-me veementemente a um passeiozinho despretensioso pela cidadela. Estava tornando-me um antipático. Um chato que não fazia nada com ninguém.

Então fui. Caminhamos seguindo rumores de que em algum canto da cidade havia um festejo de carnaval. Tentei até me animar, cantando como um louco pelas ruas as marchinhas que tinham me voltado a memória depois de ouvir o maravilhoso disco Sassaricando. Quando avistei um botequim, quase chorei. Imediatamente olhei pra patroa e mandei, sabendo que ela já compreendia o que me ia na alma:

- Sem cerveja não dá!

Fui ao bar e peguei uma latinha. Pausa. Paguei dois, nada inflacionados, reais numa latinha. Uma homenagem à cidade, aqui, por isso.

Tanto caminhamos que achamos o tal carnaval de Penápolis. A festa era em um lugar fechado, apesar de gratuito e tinha bastante segurança. Arquibancadas montadas, tendas pra Djs, parque de diversões... uma festa.
Comecei a ficar um tanto contrariado com o perfil da festa. As arquibancadas tinham mais cara de festa de rodeio do que de carnaval. Todos caminharam em direção ao parque e eu concordei em ficar sozinho tomando cerveja. O que eu não sabia era que cerveja eu teria que tomar.

Enquanto todos se afastavam, fui comprar a bebida.

- Quanto custa a Cerveja?
- Dois e cinqüenta.
- Me vê uma Skol, por favor?
- Desculpe, mas só temos Conti.
- Oi?
- Conti, senhor...
- Só essa??
- Só, senhor.
- Porra! Porra! Agora fudeu de vez!!!

A mulher, meio sem jeito com a minha reação, resolveu perguntar:

- O senhor vai querer a cerveja?
- Caralho, uma Conti? Não dá! Me vê uma Coca!
- Não temos coca, senhor. Só temos Refri-Cola.
- Potaqueopareu!! Tá foda! Tá foda!

E ela pergunta outra vez:

- E o Refri-Cola, o senhor vai querer?
- Não. Não vou achar nada nessa festa.

Como se isso não bastasse, a trilha sonora da festa era regada a muito, mas muito Bruno e Marrone.
Como nada pudesse ser mais intragável, tomei o caminho de volta pra casa, deixando todos pra trás. Nem procurei ninguém. Simplesmente fui embora. Apenas uma ligação do celular pra avisar do meu paradeiro.

Sobre o banho e a pescaria no rio Tietê, conto da próxima vez.

Um abraço solidário