quinta-feira, novembro 27, 2008

PAZ E AMOR - COM UM POUQUINHO DE SACANAGEM

Era assim uma velha brincadeira de infância que aprendi com meu pai. Numa sátira do que foi o movimento hippie - que pregava a paz e o amor em meio a uma putaria básica - nós fazíamos o símbolo de paz e amor com o dedo indicador e o médio e outra pessoa colocava seu dedo médio entre aqueles que formavam o símbolo e dava uma balançada com o tal dedo num esquema do tipo entra e sai. Um fazia o gesto e falava:

- Paz e amor!

O outro vinha e botava o dedo no meio e brincava:

- Com um pouquinho de sacanagem!

E a molecada se divertia com essa e tantas outras brincadeiras que os adultos nos ensinavam, em geral, quando estavam bêbados. Vai daí que me lembrei hoje, durante o almoço, dessa brincadeira dos tempos de outrora e é o motivo da lembrança que me fez vir aqui pra escrever esse texto.

Com alguma frequência eu vou a Ipanema dar aulas. Desde 2006 tenho umas turmas por lá. A filial do curso fica na rua Garcia D`Ávila, uma das mais caras da cidade, que concentra lojas voltadas para produtos de alto luxo e para um mercado consumidor de alto poder aquisitivo. Estão instaladas alí três unidades do grupo H. Stern, a Louis Vuitton, a Mont Blanc, uma loja exclusiva da Adidas, entre outras, cada uma mais cara do que a outra.

Atento ao contraponto, às contradições espaciais, há muito descobri que ali na Garcia, em meio a toda aquela aura de sofisticação e aquele ar muito blasé, há uma quadra que parece muito mais com o Subúrbio do que com a Zona Sul carioca. Fica entre as ruas Redentor e Nascimento Silva. Ali, ao invés de lojas sofisticadas, o que se vê é uma farmácia, um pé-sujo clássico - daqueles com dono português e gerente cearense, e eu escreverei sobre ele qualquer dia - e um estabelecimento que é meio bar e meio restaurante: o Paz e Amor.

O Paz e Amor serve um PF (prato-feito) respeitável, tem um garçom - o Marquinho - que é dos melhores e além disso, de todos os lugares onde já almoçei na vida, é lá onde o pedido chega mais rápido. Meu PF nunca demorou mais do que dois minutos pra ser servido. E bem servido.

Mas nem tudo são flores. Quem chega por volta de uma da tarde naquela esquina provavelmente fica de pé esperando um lugar pra sentar e almoçar. Faltam lugares? Não! Em todas as vezes que fui ao restaurante e vi gente esperando de pé por um lugar, havia mesas e cadeiras para que eles pudessem sentar-se. Explico.

Quando escrevi que o Paz e Amor era um estabelecimento meio bar e meio restaurante, era exatamente isso o que eu queria dizer. A metade do espaço é atendida pelo PF, servido pelo bar, já a outra metade fica com a exclusividade do serviço do restaurante. Tudo é diferente. Tudo é separado. Eu diria, mesmo, que tudo respeita a uma ordem de segregação socioespacial ali dentro.

Na primeira vez que fui ao Paz e Amor, estava sozinho e não conhecia o esquema da casa. Sentei-me em um lugar reservado aos clientes do restaurante e quando fui atendido pelo garçom, de gravata borboleta e tudo, pedi o cardápio e, por não ter encontrado o que procurava, perguntei pelo PF. Ele me apontou um lugar numa mesa onde outros três operários almoçavam.

- PF é só naquelas mesas alí, ó. Por agora só temos aquele lugar na mesa com três.

Fui pra lá e, enquanto outros aguardavam uma vaga de pé do lado de fora, calei-me com a boca de feijão. Mas não me conformei com aquele modus operandi de restrição, de segregação. Depois de mais algumas poucas visitas, prometi não voltar mais lá. Passei dois anos sem pôr os pés no Paz e Amor.

Dia desses saí do horário com dois amigos e eles tinham marcado o almoço lá. Eu já tinha almoçado mas fui com eles. Passava das duas e a briga por lugares já tinha acabado há tempos. Pedi apenas um suco e papeamos. Relembrei o bom PF que a casa serve. Hoje, saindo do trabalho às 13:30, com uma fome visceral, não resisti ao Paz e Amor e tratei de encontrar um canto pra pedir o meu PF.

Pedi e o prato se fez presente na minha mesa em quarenta e cinco segundos. Tonto com aquela rapidez, acabei esquecendo de pedir uma bebida. Estiquei o braço mas o garçom que me atendeu estava dentro do bar buscando pedidos de outros fregueses. Olhei para o outro garçom - aquele de gravata borboleta que atende só no restaurante - e fiz um sinal. Ele só apontou pro Marquinho lá dentro do bar e disse:

- É só com ele...

Até nisso a casa separa as coisas. Se eu pedir um prato de vinte contos posso ser atendido numa mesa com toalhas limpas por um garçom que usa gravatas borboletas. Mas se eu pedir um PF de oito contos, sou atendido numa mesa sem toalhas e suja de arroz com feijão. O garçom que não me atendeu continuou olhando as notícias do esporte na televisão como fazia quando eu o chamei.

Saí obviamente irritado e certo de que a casa se enquadrava perfeitamente na minha velha brincadeira de infância. Paz e Amor, sim. Mas com um pouquinho de sacanagem.

Até.

sábado, novembro 15, 2008

OS CEM ANOS DA UMBANDA

Advinda de manifestações espirituais espacialmente dispersas, a Umbanda encontra no dia 15 de novembro de 1908 um marco para o seu nascimento institucionalizado. Por meio do médium Zélio Fernandino de Moraes, o espirito que se apresentou como Caboclo das Sete Encruzilhadas manifestou-se em um centro espírita kardecista em Niterói.

Tratado pela direção do centro como um obsessor - um espírito menos evoluído, sem luz - o guia declarou que fundaria um culto para os excluídos, para os humildes, fossem eles do mundo material ou espiritual.

Nele falariam aos homens os espíritos de negros africanos, indíos brasileiros e outras entidades de diversos perfis - os arquétipos essenciais da Umbanda - sem qualquer tipo de discriminação.

"Porque repelem a presença desses espíritos, se nem sequer se dignaram a ouvir suas mensagens. Será por causa de suas origens sociais e da cor ?" - foi o que disse o caboclo ao chefe da mesa kardecista ao receber o tratamento discriminatório. No dia seguinte seria realizada na casa da família de Zélio a primeira sessão pública do movimento umbandista, na rua Floriano Peixoto, número 30, em Niterói.

De lá pra cá o movimento se espalhou rapidamente atingindo os arrebaldes mais distantes desse país. E a umbanda, nesses cem anos, já se dispersou pelo mundo. Com sua multiplicidade de influências - africanas, ameríndias e cristãs, entre outras -, a religião é em si um símbolo da mistura ímpar que forma o povo brasileiro.

No entanto, desde o princípio, e até hoje - mesmo com a proteção anti-discriminatória da lei - o culto é alvo de perseguições de diversos tipos.

A oficial, praticada pelo próprio poder público, através da polícia, que fechava terreiros e prendia caciques, sob a acusação de feitiçaria, perturbação da ordem pública, e outras razões movidas pelo preconceito contra uma religião de pretos e pobres.

A social, movida pelo pavor de uma sociedade racista, que nega veementemente suas origens negras e ameríndias, e valoriza até hoje o efeito das migrações de europeus e da consequente miscigenação como salvação do povo brasileiro, por nos permitir "melhorar a raça" e reduzir gradualmente a carga genética afro-ameríndia que corre nas veias desse povo, como se essa fosse a única e derradeira oportunidade de tornar o Brasil um país civilizado.

E, principalmente nos dias de hoje, as religiões afro-brasileiras sofrem a discriminação advinda de outras religiões, essencialmente as neopetencostais radicais. Com seu discurso fundamentalista e seu poder econômico os neopetencostais demonizam as práticas umbandistas e também as dos candomblecistas, tratando-as como um mal a ser expurgado, o que os leva a praticar atos de violência como a invasão de terreiros seguida da destruição das imagens de seus altares, como se viu no Rio de Janeiro, no mês de junho deste ano do centenário da Umbanda.

Por ser, desde a origem, uma religião sincrética, a Umbanda sempre esteve aberta à novas influências e ao longo desses cem anos sofreu inúmeras transformações que criaram uma nova característica para a religião: a maior unidade religiosa da Umbanda está na diferença.

Não há uma, mas várias umbandas. Cada casa é diferente, não só pelo sistema de organização mas pelos conjuntos de práticas rituais que, em função dessa multiplicidade de influências, tornaram-se muito diferentes.

Num imenso universo de correntes umbandistas - africanizadas, esotéricas, kardecistas etc. - as misturas e trocas de influências, e suas múltiplas combinações, criaram uma diversidade ritual tal qual a miscigenação do povo criou uma diversidade de matizes na pele dos homens desta nação. O que contribui para reforçar ainda mais a identidade genuinamente brasileira da Umbanda.

Infelizmente, dentro do próprio movimento umbandista, essa mesma diversidade que enriqueceu o culto criou dentro dele práticas discriminatórias, especialmente no que se refere às matrizes africanas e ameríndias.

Algumas correntes tratam as influências africanas e ameríndias como corruptelas rituais, práticas primitivas a serem abolidas, reproduzindo o mesmo preconceito racista e cristão-fundamentalista que perseguiu a Umbanda ao longo desse século de existência.

E valendo-se desse discurso tais correntes ampliam o seu séquito e aproveitam-se da ausência de uma unidade para tentar instituir, através da publicação de livros diversos, uma codificação para a religião, afirmando exclusivamente suas visões e discriminando as práticas que não coadunam com as suas. Trocando em miúdos, essas iniciativas contribuem para enfraquecer a multiplicidade que se tornou a principal característica da religião.

Apesar de todas essas dificuldades enfrentadas pelo movimento umbandista, eu tenho um imenso orgulho por ter nascido dentro de um terreiro de umbanda. Por minha mãe saber que me esperava em seu ventre pelas palavras de um caboclo antes que pudesse notar pelos sinais do corpo. Por fazer parte, desde que nasci, há vinte e seis anos, dessa história, hoje centenária. E de ter enfrentado o preconceito me recusando a esconder minha religião a quem interessasse saber.

Desejo, para a Umbanda, muitos séculos de vida. Que ela continue sua saga gloriosa sem jamais esquecer-se da caridade, que é seu princípio fundamental. Que ela não se acanhe diante do preconceito e da intolerância. E que se fortaleça, cada vez mais, em sua própria riqueza e diversidade, que refletem a beleza de seu berço esplêndido, a terra brasileira e o seu povo, os verdadeiros heróis civilizadores desse país.

Agô, Babá! Kolofé!
Diego de Moraes Moreira.
Filho de Zambi e Oxalá. Afilhado de Pedra Preta da Guia e Jurema. Cambono de Maria Fagundes. Protegido e guiado por Caboclo Arruda. E amigo de seu Zé Pilintra.