domingo, abril 26, 2009

O VELHO DA RUA BARÃO DE SÃO FÉLIX

Ando debruçando-me sobre a genealogia de minha família. O lado Moreira da história está parcialmente apresentado neste conto, baseado em fatos absolutamente verídicos. Interessante como a história reflete o próprio processo de suburbanização da classe trabalhadora carioca, levada do centro da cidade para a periferia por conta das reformas urbanas que demoliram morros e cortiços no início do século XX. Sem participar diretamente desse processo, nossa história também sai do centro, onde morou meu bisavô (o Velho da rua Barão de São Félix), para Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, onde morou meu avô, José Moreira. Vamos ao conto.

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Quando aqueles três garotos chegaram aos pés do sobrado, na Rua Barão de São Félix, não muito longe dos fundos da Central do Brasil, houve entre eles certa hesitação. Quem bateria à porta? Em cada um dos meninos - o mais velho com doze anos, o do meio com oito e o mais novo com sete - havia pelo menos um bom motivo para não querer ter com aquele sujeito que eles sabiam ser o avô a quem jamais tinham conhecido. Não na intimidade do lar, como se espera dos membros de uma família. E não queriam ter com ele exatamente porque sabiam o quanto aquele encontro era indesejado para avô. Deles, apenas o mais velho tinha uma experiência pra contar sobre o português que há muito morava naquele sobrado.

E não era das melhores. O velho Agostinho Moreira tinha amargado um enorme prejuízo por causa de uma travessura daquele petiz que fizera espalhar fogo em sua fábrica de colchões outrora instalada na praia do Caju. O garoto José Antônio jamais tinha visto o avô novamente depois daquele episódio em que arruinou-lhe um importante patrimônio. No entanto estava agora com os pés na soleira da porta de seu sobrado, na qualidade de neto mais velho e portador de uma mensagem que, obediente, encaminhava do pai para o avô.

Por conta da hesitação dos mais novos, tomou a corajosa iniciativa de bater-lhe à porta. Passaram-se alguns segundos, que para os três meninos foram de interminável ansiedade, e então viram aparecer apenas parte de um semblante algo castigado pelo tempo e, talvez, por amarguras, rancores ou decepções, os sentimentos acumulados ao longo da vida e que agora, transpareciam em cada ruga estampada em alto-relevo na face. O rosto surgiu pelo pequeno espaço da janelinha que se abriu no meio da porta de entrada da casa. Mesmo tendo ficado um tanto atordoado pela visita inesperada, o velho nem ameaçou abrir a porta por completo a fim de deixar os garotos entrarem, não ofereceu uma água sequer e muito menos se preocupou em ser minimamente gentil com os netos.

- O que queres? – perguntou, em tom grosseiro, o português.

Inibido diante da figura carrancuda e da atitude ríspida do avô, José Antônio não respondeu nenhuma palavra. Apenas entregou-lhe pelo buraco do vidro aberto na porta o bilhete escrito pelas mãos do pai, o único filho varão de Agostinho. Nele, José Moreira apresentava os dois filhos, Cesar, que era o do meio, e Sergio, o mais novo do grupo, que até então eram desconhecidos para o avô. E convidava o velho pai para passar a noite daquela véspera do Natal de 1965 em Duque de Caxias, onde morava com a mulher e os filhos. O velho passou rapidamente os olhos pelo bilhete que tinha nas mãos, amassou-o com desdém e fechou a janelinha da porta, deixando as crianças a esperar do lado de fora. Ficariam aguardando, em silêncio, sem a certeza de que o avô voltaria.

Os garotos tinham saído da Baixada Fluminense, logo pela manhã, num ônibus que os deixou no terminal Mariano Procópio, na Praça Mauá. Dali eles foram caminhando o longo trecho da Rua Sacadura Cabral até a Ladeira do Morro do Valongo, por onde seguiram até a entrada da Barão de São Félix, na altura da praça dos estivadores. A Barão de São Félix começa naquele ponto e segue até encontrar-se com a Senador Pompeu, atrás de onde hoje fica o terminal rodoviário Américo Fontenelle, que não existia na época, e no caminho cruza as ruas Alexandre Mackenzie, Costa Ferreira, Visconde da Gávea, Bento Ribeiro e, quase no fim, se encontra com a Coronel Aldomaro Costa.

Com esse trajeto a Barão de São Félix vai da Saúde até a Gamboa, bairros do centro velho do Rio de Janeiro, que participaram da etapa colonial da urbanização carioca, do século XVI até o XIX, e que viram aos seus pés o despertar do processo de suburbanização dos proletários da cidade, a partir do final do século XIX e do início do século XX, com o povo estabelecendo suas novas moradias ao longo da Estrada de Ferro Central do Brasil, aberta no final da década de 1850 e que partia exatamente dali, pertinho do encontro da Barão de São Félix com a Senador Pompeu.

Embora tenha sido fundada entre os morros do Pão de Açúcar e Cara de Cão em primeiro de março de 1565, não foi ali que a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro cresceu e, de fato, floresceu. Muito por conta da falta de espaço e da ausência de fontes de água potável, o núcleo urbano original não pôde se expandir. Abandonada então aquela posição estratégica, na entrada da Baía de Guanabara, os colonizadores transferiram pouco depois da fundação da cidade o núcleo urbano para o sítio do Morro do Castelo.

Do alto do morro a visão da entrada da baía era excelente, permitindo avistar os possíveis invasores ao longe. Erguendo-se às margens da baía, e por isso cercado por várzeas, lagos e pântanos, seu acesso era um tanto difícil naqueles tempos de ocupação pioneira, o que tornava a posição espacial do morro também estratégica para a defesa do território. Ainda no final do século XVI começaria a expansão urbana para além do Castelo, descendo o morro da urbanização primordial seguindo pelo litoral em direção ao morro de São Bento.

No São Bento foi erguido a partir de 1590 o mosteiro em homenagem ao santo homônimo cuja construção, para além de sua suntuosidade, obedecia à outra característica de algumas das Igrejas que emergiram ali: foi construída voltada para o mar, para servir de ponto de observação do tráfego marinho e de fortificação no caso de batalhas. Na linha que ligava o Castelo ao São Bento foi aberta a Rua Direita, atual Primeiro de Março, onde se deu a construção de outras Igrejas com a mesma característica, como a da Candelária, a Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmo e a Igreja de Nossa senhora do Carmo da Antiga Sé, que é a antiga catedral da cidade. Há ainda na Primeiro de Março outras duas Igrejas: a de São José e a da Santa Cruz dos Militares, mas essas foram construídas de frente para a Rua Direita, a principal da cidade naquela época.

Mas nenhuma das ruas de toda a cidade, ou do país e talvez do mundo inteiro, foi mais aclamada, pelas elites e pelo povo, do que a Rua do Ouvidor. Nascida sob o curioso nome de "Desvio do Mar", logo foi batizada de Aleixo Manoel, nome de um homem que era barbeiro de pobres e cirurgião de ricos, e que vivia naquele logradouro. De origem humilde, com casas pobres, de gente pobre, a rua foi valorizada no final do século XVIII quando a cidade assumiu a função de capital colonial e com a chegada do ouvidor da coroa que se estabeleceu, convenientemente, ali na Aleixo Manoel, entre o Castelo e o São Bento, o coração da cidade, pertinho do porto e da alfândega. O Rio de Janeiro crescia em função do porto que escoava o ouro da região das Minas Gerais. Daí o povo que ali se mantinha, aos poucos, passou a chamar o velho logradouro de Rua do Ouvidor.

Com a chegada da família real portuguesa ao Brasil e a abertura dos portos, comerciantes ingleses e depois outros, principalmente franceses, passaram a estabelecer-se naquela rua, forjando uma valorização que expulsou o povo daquelas bandas e inventou um novo mercado para a elite carioca. Sedas, jóias, perfumes, chapéus, maisons de luxo, além salões de cabeleireiros, sorveterias e livrarias, brotavam daquele chão, abastecendo a nobreza com suas necessidades, futilidades e cobiças. Melhorias de todos os tipos foram implantadas. Tudo para ampliar o conforto e a comodidade dos ilustres transeuntes da rua mais passeada, faceira e leviana da cidade. A Ouvidor transformou-se no exemplo mais perfeito da hospitalidade franco-carioca, o ventre sedutor da inebriante cidade-mulher.

A identificação da intelectualidade com a rua remonta aos tempos da inauguração, em 1827, do Jornal do Commércio, e se estende pelo ramo editorial com os jornais criados por homens como o Barão do Rio Branco, Rui Barbosa e Quintino Bocaiúva, entre outros, além de ser permeada pelo afloramento dos Cafés que aglutinavam grupos de todos os tipos, desde políticos, boêmios, jornalistas e literatos, artistas e mademoseilles. Então, muito mais do que espaço do poder econômico, a Ouvidor assume o papel de centro de convergência do pensamento da sociedade carioca e de magno altar das divergências políticas da pátria. Mas se a Ouvidor foi palco para o desfile de barões, também o foi para malandros, que ali representavam a resistência do povo em se manter presente nos espaços que a elite tentou se apropriar, fazendo dela o seu espaço, o palco supremo de suas manifestações culturais, a inalienável essência da carioquice.

Então, seguindo a Ouvidor e as outras ruas que, abertas desde o final do século XVI, cruzavam a Rua Direita, partindo do mar em direção ao interior, a ocupação se estendeu atingindo outros dois morros próximos: o de Santo Antônio, atrás do Castelo e o da Conceição, atrás do São Bento.

O Morro de Santo Antônio recebeu este nome por conta do convento erguido a partir de 1608 pelos frades franciscanos que receberam como presente as terras daquele outeiro. Até 1679 havia no sopé da montanha o lago de São Francisco, que foi aterrado depois dos insistentes pedidos feitos pelos frades. No lugar surgiu o largo da Carioca. Em 1710, a cidade foi invadida por franceses que, sob o comando de Jean-François Duclerc, entraram pela Baía de Guaratiba atacando a cidade pela retaguarda. Diante da ameaça, o governador Francisco de Castro Morais pediu a ajuda de Santo Antônio aos pés de sua imagem no convento.

Enfrentando a resistência popular de estudantes, pretos forros, barbeiros e outros paisanos armados, capitaneados pelo professor Bento de Amaral, Duclerc foi capturado e morto no cativeiro, e a invasão foi suprimida. Após a vitória, o governador nomeou a Imagem de Santo Antônio do convento como Capitão de Infantaria, incluindo direito a soldo, que foi pago diretamente ao convento até 1911. O príncipe regente D. João VI, impressionado com a história, promoveu o santo a Sargento-mór em 1810 e a Tenente-coronel em 1813.

A região do Santo Antônio começou a tornar-se o centro de aglomeração da população da velha capital. A partir de 1893, com o forte crescimento populacional da cidade e com o retorno dos soldados vitoriosos da campanha de Canudos, no sertão baiano, começa a surgir naquele morro a primeira favela do Rio de Janeiro. Recebida a permissão para se instalarem naquelas encostas, os militares foram construindo suas casas, no que foram seguidos por outros populares despejados dos primeiros cortiços demolidos pelo então prefeito Barata Ribeiro. O desmonte de cortiços era um processo que fazia parte de uma campanha higienista que visava sanear a cidade, entre outras formas, expulsando os pobres das áreas de alta valorização imobiliária, e essa política se intensificaria na alvorada do século XX com as reformas urbanas implantadas no centro do Rio pelo prefeito Francisco Pereira Passos.

Na direção oposta ao Santo Antônio, ergue-se o morro da Conceição que tem seu nome dado por conta de uma pequena capela construída na região em 1634 e dedicada a essa santa. Em 1582, porém, a Igreja em homenagem a Nossa Senhora da Conceição tinha sido erguida no morro em frente, o de São Bento. No entanto quando o dono da sesmaria local doou as terras do morro para a Ordem dos Monges Beneditinos, a Igreja foi destruída e no local surgiu o Mosteiro de São Bento e uma Igreja que os monges consagraram a Nossa Senhora de Monsserat e não a Nossa Senhora da Conceição. Por isso foi construída no morro de trás a nova capela em homenagem a santa da Igreja destruída.

Em 1702 a capela deu lugar ao segundo Palácio Episcopal do Rio de Janeiro. Embora Duclerc não tivesse alcançado sucesso em sua invasão de 1710, outro francês, René Duguay-Trouin, invadiu a cidade em 1711 e anunciou o seqüestro toda a população carioca, exigindo o pagamento de um altíssimo resgate para libertar a cidade de São Sebastião. Na ocasião, Duguay-Trouin apoderou-se do vizinho Mosteiro de São Bento. Por isso, a fim de evitar novas surpresas desagradáveis, a partir de 1742, foi construída no Morro da Conceição uma Fortaleza que acabou servindo de arsenal de guerra e de presídio político para inconfidentes, dentre eles, Thomás Antônio Gonzaga.

A singela colina da Conceição, habitada por gente que ainda hoje preserva hábitos e costumes urbanos cordiais e solidários há muito extintos da vida caótica das grandes metrópoles, representa um dos vértices do quadrilátero primordial que originou o tecido urbano colonial carioca juntamente com o Santo Antônio, o São Bento e o Castelo. Suas ladeiras e becos foram o ancoradouro de vários imigrantes italianos, espanhóis e portugueses que aportaram no Rio de Janeiro no final do século XIX e no início do século XX, e serviram também como berço para os seus descendentes.

E foi exatamente ali, no sopé do Morro da Conceição, na Rua Barão de São Félix, que se radicou o português Agostinho Moreira, que tinha agora três netos, em silêncio, diante sua porta a espera de uma resposta ao convite do pai para a ceia de Natal. Mesmo depois da viagem que fizeram da Baixada Fluminense ao Centro do Rio de Janeiro, e depois da caminhada da Praça Mauá, pela Sacadura Cabral e pela Ladeira do Morro do Valongo, até a Barão de São Félix, os garotos não guardavam muitas esperanças para o início de um novo convívio em família, com a presença do avô. Na verdade, nenhuma esperança. Quando os meninos já acreditavam que o velho galego não se daria sequer o trabalho de responder ao bilhete do filho, Agostinho apareceu novamente e, sem abrir a porta, passou um envelope pela janelinha, entregando-o ao mais velho, e disse em tom árido:

- Tomes aqui quinhentos contos para a passagem de volta e diga ao teu pai que não passo o Natal em casa de pobre.

quinta-feira, abril 23, 2009

COTIDIANAS SUBURBANAS

Já escrevi várias vezes aqui sobre hábitos, costumes e tradições dos suburbanos. Antes de apresentar mais alguns desses costumes, quero esclarecer que não cabe aqui nenhuma sombra de bairrismo, regionalismo ou coisa que o valha. Os suburbanos são pessoas de diversas origens. Agregam tradições vindas dos recantos mais isolados desse país e do mundo.

O Subúrbio tem brasileiros com antepassados nativos, com antepassados que aqui chegaram há muito, e são frutos da saborosa mistura que forjou esse povo. Mas tem também aqueles cujos antepassados chegaram há pouco e ainda os que não tem antepassados nessa terra.

O Subúrbio tem católicos, crentes, esotéricos, judeus, juremeiros, macumbeiros de todos os batuques, muçulmanos, rezadeiras, wiccas e o escambau. Cabe todo mundo. E, por isso, ele é uma bela síntese da diversidade que forma o povo brasileiro. Dito o necessário, vamos em frente.

Poucas coisas são mais bonitas do que a confiança que as pessoas tem nas outras. O convívio, a amizade e a vizinhaça são capazes de produzir essa confiança com a ajuda do tempo. E é um caso de amizade, vizinhança, convívio e confiança que eu quero contar.

Nessa véspera do dia de São Jorge, padroeiro do Brasil no coração do povo, mamãe saiu de casa para comprar palmas vermelhas e levar para o Templo de Iemanjá, que faria uma festa para Ogum no dia 23. Levava pouco dinheiro, apenas treze pratas preenchiam a sua carteira.

Ao chegar na barraca de flores, que estava lotada de fiéis do Cavaleiro de Aruanda, mamãe encontrou uma obra prima da natureza. Era a Crista de Galo, flor tradicionalmente usada pelos fiéis para presentear o algoz do dragão. Estavam belíssimas. Mamãe juntou as Palmas, a Crista de Galo e fez as contas. Tudo sairia por vinte pratas. Seu dinheiro não dava.


Ela atravessou a rua e foi falar com o Jorge, vendedor de legumes que trabalha por ali há muito tempo. Mamãe, morando há 26 anos no mesmo lugar, só não é conhecida pelos mais novos, como o florista. O mesmo vale para meu pai, minha irmã e para mim. Mamãe não teve dúvida:

- Ô Jorge, me empresta dez reais aí, pra eu comprar umas flores ali no cara? Depois eu te pago.

O Jorge só respondeu

- Pode levar. Não tem pressa, não.

O relógio marcava mais ou menos onze da manhã. Mamãe comprou as flores, foi pra casa, fez almoço, almoçou, lavou louça, viu novela, dormiu durante e depois da novela e, só depois, foi devolver o dinheiro do Jorge. E o que ele disse?

- Ô, mulher! Não falei que não tinha pressa? Podia trazer isso pra semana...

Mamãe respondeu:

- Ah, não, Jorge. Minha cabeça tá muito ruim. Depois eu esqueço e você fica sem o dinheiro.

Os dois riram.

Pra muitos, esse gesto - pedir dinheiro emprestadoao verdureiro - é absolutamente bizarro. Para o Jorge, que me viu de fraldas com dois meses de idade, não emprestar é que seria bizarro. Especialmente porque sempre mantivemos essa relação de amizade.

O que me encanta nessa crônica cotidiana de véspera de feriado é essa relação de camaradagem, de amizade, de proximidade, de confiança. Esse é o meu lugar, onde eu aprendo com minha mais velha a beber dessa forma de vida. Esse é o meu subúrbio, é o meu esteio.

domingo, abril 19, 2009

SOU CONTRA MUROS EM FAVELAS

Para quem usa o orkut: acabei de criar uma comunidade para reunir os que são contra muros em favelas. Eis o link:

http://www.orkut.com.br/Main#Community.aspx?cmm=87162220

Nos vemos lá!

sábado, abril 18, 2009

SOBRE MUROS, CAVEIRÕES E REMOÇÕES

Os estudos mais básicos de geografia urbana são suficientes para compreender como se constrói o espaço interno das cidades. Para saber quem de fato manda no processo, quem determina e orienta como, quando e para onde as metrópoles devem crescer.

Os agentes sociais que conduzem a produção do espaço urbano são o grande capital - representado pelos donos dos meios de produção, pelos proprietários de terras nas cidades e pelas grandes construtoras - e o Estado - que raramente age de forma neutra em seu papel de regulação do uso do espaço e de provedor de infraestrutura, quase sempre favorecendo a reprodução do grande capital. Ou seja, é aos grupos socialmente mais representativos que pertence a primazia de orientar a produção do espaço das cidades em geral, cabendo ao povo apenas o papel segui-los enquanto massa, excluídos do poder de decisão.

A política urbana da cidade do Rio de Janeiro, desde o final do século XIX, foi baseada no "higienismo" que, em seu aspecto social, determinou o desmonte de cortiços, a demolição de morros e a consequente expulsão de seus habitantes - pobres, operários e excluídos - para as áreas de menor interesse para o capital imobiliário. Condição sine qua non para a valorização das áreas nobres cobiçadas pelos especuladores. Inicia-se a favelização da cidade, como reflexo da tentativa do operário de manter-se próximo ao local de trabalho.

Multiplicam-se, então, as favelas - cidades informais dentro da cidade formal. Ambiente propício à proliferação de todas as formas de ilegalidade. Fazer o que? Há luz? Água? Esgoto? Educação? Saúde? Não! Para as coisas de casa, com a esperteza que só tem quem está cansado de apanhar, encontra-se um jeito. Mas sem escola ninguém aprende. E sem saúde o povo morre. Preso na miséria da favela. Mas nem tão livre do açoite na senzala, como achou o poeta. A senzala de hoje é o trem na estação de Madureira.

O problema que descortina-se diante do regulador do espaço impõe uma tomada de posição, uma escolha: ou o Estado formaliza o espaço ilegal ou luta contra ele. Do higienismo aos dias atuais ficou claro que o regulador do espaço optou pela repressão. O Favela-Bairro acabou funcionando como uma forma de combate à informalidade travestida de ação inclusiva. Lobo Mau com cara de Vovozinha. A microfísica do poder determinou que se deve vigiar e punir os pobres, os condenados da cidade.

Então o Estado equipa-se com aparatos de repressão à ilegalidade ao som dos aplausos do grande capital. Mas na favela, os estalos são outros. Foguetes e morteiros anunciam o início de mais uma batalha dessa guerra farta em esquizofrenia. Pois as redes ilegais da violência nos morros alimentam-se da corrupção dos bonecos do Estado, as marionetes mal pagas do jogo da guerra.

A classe média, que se submete a empenhar durante décadas grande parte do seu dinheiro ganho com o suor da lida do dia-a-dia, pra ter o direito de viver - e morrer - num caixote, cercada de grades e vigiada noite e dia, é tão vítima quanto os que nem isso puderam prover para si. É ela que engorda as fortunas do grande capital. Mas, de tão estúpida e reacionária, não se dá conta disso. E exige do Estado a barbárie. A mais violenta forma de repressão. Caveira, meu capitão! Caveira!

Publicado na Folha de São Paulo, em 14/04/2009.

Agora o Estado vestiu, por cima da farda preta, a camisa verde da mata atlântica pra defender a construção de muros que estabeleçam "ecolimites" à expansão das favelas na cidade. Uma ideia incoerente. A classe média, estúpida e reacionária, quer mais. Exige a remoção das que já existem.

A incoerência é simples e proposital. Se fosse pra ser coerente, o Estado também deveria construir muros, fazer remoções e estabelecer ecolimites nos manguezais da Barra da Tijuca. Mas aí o patrão não deixa. Fica bravo. E o Estado corre o risco de ser demitido. Sem justa causa.

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Meu agradecimento à Clélia Riquino, que enviou-me a charge de Angeli por email.