domingo, dezembro 21, 2008

SOBRE A SABEDORIA POPULAR

Em fevereiro desse ano eu tinha postado aqui no Geografias Suburbanas, uma receita da mais alta malandragem que mamãe utiliza quando precisa corrigir alguma vacilada com o sal num dos seus refogados. O lance é - clique no link acima e leia o texto! - o seguinte: se caiu sal demais, coloque a tampa da panela por cima dela de maneira que não a feche completamente e - veja a foto! - coloque um pouco de sal por cima da tampa. O sal puxa o excesso.

O que ocorre é que essa sabedoria dos antigos - minha mãe aprendeu a malandragem do sal com minha avó e sabe-se lá que caminhos esse conhecimento percorreu até chegar aqui - me emociona profundamente. Isso porque trata-se de uma prática cultural. Essa forma de transmissão dos saberes - de boca em boca - cria mitos, verdadeiras lendas que crescem e se vivificam saltando de mente em mente no imaginário do povo.

Já disse num texto anterior que eu e minha senhora fizemos as malas e baixamos aqui no Engenho da Rainha, na casa de mamãe. E um hábito de mamãe, que estamos absorvendo, é varar madrugada adentro apenas a conversar. E eu venho redescobrindo essa sabedoria profunda que mamãe abriga e revela nesses momentos - mamãe gosta de falar no silêncio da madrugada. Preserva com precisão e transparência cristalina alguns dos detalhes mais profundos das histórias que conta. Inventa e reinventa as partes mais opacas, como se faz em toda tradição oral respeitável. E ela é, sem se dar conta, uma escola dessa sabedoria popular.

Num desses dias de conversa varando a madrugada, mamãe falava das simpatias que ela fazia para mim e para minha irmã quando éramos crianças - a temática infantil está em alta na família. Lembro que, num momento da conversa, em menos de cinco minutos mamãe exibiu uns três ou quatro mitos, contextualizados com narrativas absolutamente verídicas, sobre o cuidado com crianças. Eu, que não tenho memória tão firme nas altas madrugadas, lembro apenas de um, em que o personagem da narrativa verídica era eu mesmo.

Quando eu nasci, mamãe ainda trabalhava, pegando cedo no batente. E nos primeiros anos eu dormia como um anjo durante o dia e passava a noite inteira acordado. Era o único momento em que eu via minha mãe. E queria brincar.

Eu estava "virado", como diem os mais velhos. Trocando as noites pelos dias. Mamãe, que sentia saudades dos filhos, até gostava de brincar comigo, mas depois das três da manhã e sabendo que o galo cantava às cinco, o ânimo já não era tão grande quanto o sono que vencia a batalha gloriosamente. O que fazer? É aí que entra a sabedoria dos mais velhos.

E essa sabedoria diz que quando se coloca uma tesoura debaixo do travesseiro de uma criança "virada", ela em pouco tempo "desvira", e volta a dormir durante as noites e ficar acordado durante os dias. É recomendável que não se utilize tesouras de pontas afiadas. Evitar acidentes é fundamental, por isso as tesouras escolares são mais apropriadas. Por que funcionaria? Perguntar isso já significaria tentar impor uma análise científica em algo que deve ser tratado e cultivado como lenda ou mito. E que deve se reproduzir como tal. Cientifizar a coisa é deturpá-la, destituí-la de sentido.

E o mais bonito de tudo: mamãe diz que deu certo.

--------------------------------------------------------------------

O Geografias deseja um Feliz Natal aos Suburbanos Transeuntes!
Forte Abraço!

quarta-feira, dezembro 17, 2008

O PRESENTE DE ANIVERSÁRIO

Este humilde blog completa hoje dois anos no ar. Nascido nessa atmosfera natalina, o Geografias Suburbanas recebeu, pela manhã de hoje, um email com um cartão de Natal enviado pelo mestre Nei Lopes, que nós aqui em casa interpretamos como um presente para o aniversariante virtual.


Longa vida ao Geografias Suburbanas! Abraços!

domingo, dezembro 07, 2008

A MALDIÇÃO DO BOM VELHINHO - REEDIÇÃO

Escrevi em 21 de dezembro de 2006 esse texto que reedito agora. A motivação veio ontem, 06 de dezembro, que foi o dia de São Nicolau, que representa em várias partes do mundo o Papai Noel. Segue a minha opinião sobre o "bom velhinho".

-------------------------------------------

O Natal é uma festa cristã por excelência. O sentido da data está na celebração do nascimento do homem que dividiu a história da humanidade, ou pelo menos da sociedade ocidental, em antes e depois de sua vinda. Diria que em tempos de globalização tornou-se praticamente impossível não ser afetado direta ou indiretamente pelo calendário estabelecido em função de sua chegada.

Então, no Natal, as pessoas se aproximam, as famílias se reúnem repetindo uma tradição cuja origem se perde na noite escura dos séculos. E é nessa concepção original que reside o verdadeiro espírito natalino. É um momento de festa. Os cristãos felicitam-se por lembrar que neste dia o seu maior mensageiro fez-se presente neste orbe tornando completa a Sagrada Família. Exatamente por este motivo é que as reuniões de família são tradição no Natal. Às vezes, causa única para tal reunião.

Eu, que não sou cristão mas tenho profundo respeito e admiração pela sabedoria do Cristo, participo do Natal procurando manter em mente o seu sentido original. Fico embevecido (melhor dizer embasbacado, de queixo caído) com o espanto que minha postura causa na maioria das pessoas, pra não dizer em praticamente todas. Algumas, parecendo ver lá longe, muito longe, o verdadeiro sentido do Natal no que faço, ou deixo de fazer, dizem:

- "É... Eu acho que ele está certo". – mas seguem cumprindo à risca tudo o que é determinado, imposto, pelo Natal dos dias menos interessantes em que vivemos.

Acredito que existem vários vilões, princípios causais da brusca transformação que o festejo natalino sofreu. Vilões sim, pois na minha opinião, o que temos hoje é muito pior do que aquilo que deveríamos ter nesta época. Mas nenhum deles pode ser pior do que o "Bom Velhinho".

A lenda diz que ele possui em sua própria casa, na Lapônia, uma fábrica gigantesca de brinquedos onde trabalha com sua senhora, a mamãe Noel, e uma enorme quantidade de empregados. Passa com precisão cirúrgica e de forma obviamente onipresente à meia-noite do dia 24 para o dia 25 de dezembro (reparem, é exatamente no horário em que teria nascido o Cristo) nas casas de todas as criancinhas do mundo deixando-lhes presentes. Para receber o embrulho, basta que o anjinho tenha se comportado bem e respeitado os pais durante o ano. E ele sempre vem, diz a lenda.

Qual é a linguagem que envolve de forma mais sedutora o imaginário infantil? Aquela que pretende valorizar a vinda de um homem que morreu há séculos com o objetivo de salvar a humanidade (o que é difícil de compreender até mesmo para adultos) ou aquela que cria a perspectiva de que, dentro de instantes, o anjinho será agraciado com o presente tão desejado durante o ano inteiro, pelas mãos do bom velhinho que nunca se deixa ver mas sempre comparece?

Desde o surgimento da lenda do Papai Noel o sentido do natal tem sua distorção potencializada. Desde a mais tenra idade somos conduzidos pelo mito a dar maior importância aos presentes natalinos do que aos valores que originaram a festa.

Para o cristianismo, Cristo é um homem bom, sábio e que estimulou a prática da caridade. E o que é o "bom velhinho?" Bom, como diz o próprio nome, sábio, e sua sabedoria é inspirada pela idade mais avançada, e caridoso, afinal, um homem que passa o ano inteiro recebendo cartas e confeccionando presentes para todas as crianças do mundo em troca de boas ações é o exemplo mais perfeito de caridade de que se tem conhecimento. Ele alegra os corações infantis.

Somando-se a isso, ele é onipresente, como o Cristo nas orações dos fiéis, e faz-se presente no Natal, também como o Cristo, inclusive no mesmo horário.

No entanto, sua presença transformou o Natal em um comércio! Excitadas pelo mito, crianças berram com os pais exigindo presentes. Criou-se uma exigência absurda de que as pessoas devem presentear as outras sob a justificativa de se estar realizando comunhão. Famílias se reúnem, trocam presentes e, minutos após a Ceia, onde todos se fartam com comilanças execráveis (quase sempre se esquecendo do pão e do vinho da ceia original), as mesmas famílias se dispersam comentando, em geral, os defeitos do encontro, de determinados parentes e, especialmente do anfitrião.

Noel é o espelho do Cristo. O contrário. E o reflexo de sua presença resulta na deturpação total do Natal e constitui a causa do esquecimento, completo em muitos casos, do princípio fundamental da tradição cristã.

Queria evitar, mas não posso. Pra mim, Noel é a personificação mais perfeita que existe do temido e demonizado Anti-Cristo!

Um Abraço Solidário!!!

sábado, dezembro 06, 2008

CERVEJA SAMICHLAUS

Inicialmente produzida pela Cervejaria Hurlimann - Suíça e desde 2000 pela Eggenberg - Áustria, a Samichlaus Bier é fabricada apenas uma vez ao ano, no dia 06 de dezembro, dia de São Nicolaus (Santa Claus ou, como conhecemos por aqui, Papai Noel). Envelhecida por 10 meses antes do engarrafamento, a Samichlaus é uma rara especialidade de cerveja, com 14% de teor alcoólico - o maior de seu gênero (cerveja lager - baixa fermentação), tendo sido listada inclusive no Guinness Book of Record.

A Samichlaus não possui prazo determinado de validade e continua maturando na garrafa. Como as tradicionais cervejas Vintage, com o passar do tempo seus aromas tornam-se mais complexos e com um cremoso e acalentado paladar. Uma cerveja para acompanhar pratos robustos, sobremesas a base de chocolate e para ser apreciada como uma bebida por si só, principalmente após a refeição.• Estilo: strong lager (baixa fermentação) - 14% alc.
• Cor : âmbar-marrom, brilhante e profunda
• Aroma : complexo, rico em castanha, uva passa, fumo e malte.
• Paladar : potente, rico em malte, inicia adocicado, com acabamento semi-seco e retro gosto seco.

Hoje é dia de Samichlaus! Bebabmos, pois! Abraços!

quinta-feira, novembro 27, 2008

PAZ E AMOR - COM UM POUQUINHO DE SACANAGEM

Era assim uma velha brincadeira de infância que aprendi com meu pai. Numa sátira do que foi o movimento hippie - que pregava a paz e o amor em meio a uma putaria básica - nós fazíamos o símbolo de paz e amor com o dedo indicador e o médio e outra pessoa colocava seu dedo médio entre aqueles que formavam o símbolo e dava uma balançada com o tal dedo num esquema do tipo entra e sai. Um fazia o gesto e falava:

- Paz e amor!

O outro vinha e botava o dedo no meio e brincava:

- Com um pouquinho de sacanagem!

E a molecada se divertia com essa e tantas outras brincadeiras que os adultos nos ensinavam, em geral, quando estavam bêbados. Vai daí que me lembrei hoje, durante o almoço, dessa brincadeira dos tempos de outrora e é o motivo da lembrança que me fez vir aqui pra escrever esse texto.

Com alguma frequência eu vou a Ipanema dar aulas. Desde 2006 tenho umas turmas por lá. A filial do curso fica na rua Garcia D`Ávila, uma das mais caras da cidade, que concentra lojas voltadas para produtos de alto luxo e para um mercado consumidor de alto poder aquisitivo. Estão instaladas alí três unidades do grupo H. Stern, a Louis Vuitton, a Mont Blanc, uma loja exclusiva da Adidas, entre outras, cada uma mais cara do que a outra.

Atento ao contraponto, às contradições espaciais, há muito descobri que ali na Garcia, em meio a toda aquela aura de sofisticação e aquele ar muito blasé, há uma quadra que parece muito mais com o Subúrbio do que com a Zona Sul carioca. Fica entre as ruas Redentor e Nascimento Silva. Ali, ao invés de lojas sofisticadas, o que se vê é uma farmácia, um pé-sujo clássico - daqueles com dono português e gerente cearense, e eu escreverei sobre ele qualquer dia - e um estabelecimento que é meio bar e meio restaurante: o Paz e Amor.

O Paz e Amor serve um PF (prato-feito) respeitável, tem um garçom - o Marquinho - que é dos melhores e além disso, de todos os lugares onde já almoçei na vida, é lá onde o pedido chega mais rápido. Meu PF nunca demorou mais do que dois minutos pra ser servido. E bem servido.

Mas nem tudo são flores. Quem chega por volta de uma da tarde naquela esquina provavelmente fica de pé esperando um lugar pra sentar e almoçar. Faltam lugares? Não! Em todas as vezes que fui ao restaurante e vi gente esperando de pé por um lugar, havia mesas e cadeiras para que eles pudessem sentar-se. Explico.

Quando escrevi que o Paz e Amor era um estabelecimento meio bar e meio restaurante, era exatamente isso o que eu queria dizer. A metade do espaço é atendida pelo PF, servido pelo bar, já a outra metade fica com a exclusividade do serviço do restaurante. Tudo é diferente. Tudo é separado. Eu diria, mesmo, que tudo respeita a uma ordem de segregação socioespacial ali dentro.

Na primeira vez que fui ao Paz e Amor, estava sozinho e não conhecia o esquema da casa. Sentei-me em um lugar reservado aos clientes do restaurante e quando fui atendido pelo garçom, de gravata borboleta e tudo, pedi o cardápio e, por não ter encontrado o que procurava, perguntei pelo PF. Ele me apontou um lugar numa mesa onde outros três operários almoçavam.

- PF é só naquelas mesas alí, ó. Por agora só temos aquele lugar na mesa com três.

Fui pra lá e, enquanto outros aguardavam uma vaga de pé do lado de fora, calei-me com a boca de feijão. Mas não me conformei com aquele modus operandi de restrição, de segregação. Depois de mais algumas poucas visitas, prometi não voltar mais lá. Passei dois anos sem pôr os pés no Paz e Amor.

Dia desses saí do horário com dois amigos e eles tinham marcado o almoço lá. Eu já tinha almoçado mas fui com eles. Passava das duas e a briga por lugares já tinha acabado há tempos. Pedi apenas um suco e papeamos. Relembrei o bom PF que a casa serve. Hoje, saindo do trabalho às 13:30, com uma fome visceral, não resisti ao Paz e Amor e tratei de encontrar um canto pra pedir o meu PF.

Pedi e o prato se fez presente na minha mesa em quarenta e cinco segundos. Tonto com aquela rapidez, acabei esquecendo de pedir uma bebida. Estiquei o braço mas o garçom que me atendeu estava dentro do bar buscando pedidos de outros fregueses. Olhei para o outro garçom - aquele de gravata borboleta que atende só no restaurante - e fiz um sinal. Ele só apontou pro Marquinho lá dentro do bar e disse:

- É só com ele...

Até nisso a casa separa as coisas. Se eu pedir um prato de vinte contos posso ser atendido numa mesa com toalhas limpas por um garçom que usa gravatas borboletas. Mas se eu pedir um PF de oito contos, sou atendido numa mesa sem toalhas e suja de arroz com feijão. O garçom que não me atendeu continuou olhando as notícias do esporte na televisão como fazia quando eu o chamei.

Saí obviamente irritado e certo de que a casa se enquadrava perfeitamente na minha velha brincadeira de infância. Paz e Amor, sim. Mas com um pouquinho de sacanagem.

Até.

sábado, novembro 15, 2008

OS CEM ANOS DA UMBANDA

Advinda de manifestações espirituais espacialmente dispersas, a Umbanda encontra no dia 15 de novembro de 1908 um marco para o seu nascimento institucionalizado. Por meio do médium Zélio Fernandino de Moraes, o espirito que se apresentou como Caboclo das Sete Encruzilhadas manifestou-se em um centro espírita kardecista em Niterói.

Tratado pela direção do centro como um obsessor - um espírito menos evoluído, sem luz - o guia declarou que fundaria um culto para os excluídos, para os humildes, fossem eles do mundo material ou espiritual.

Nele falariam aos homens os espíritos de negros africanos, indíos brasileiros e outras entidades de diversos perfis - os arquétipos essenciais da Umbanda - sem qualquer tipo de discriminação.

"Porque repelem a presença desses espíritos, se nem sequer se dignaram a ouvir suas mensagens. Será por causa de suas origens sociais e da cor ?" - foi o que disse o caboclo ao chefe da mesa kardecista ao receber o tratamento discriminatório. No dia seguinte seria realizada na casa da família de Zélio a primeira sessão pública do movimento umbandista, na rua Floriano Peixoto, número 30, em Niterói.

De lá pra cá o movimento se espalhou rapidamente atingindo os arrebaldes mais distantes desse país. E a umbanda, nesses cem anos, já se dispersou pelo mundo. Com sua multiplicidade de influências - africanas, ameríndias e cristãs, entre outras -, a religião é em si um símbolo da mistura ímpar que forma o povo brasileiro.

No entanto, desde o princípio, e até hoje - mesmo com a proteção anti-discriminatória da lei - o culto é alvo de perseguições de diversos tipos.

A oficial, praticada pelo próprio poder público, através da polícia, que fechava terreiros e prendia caciques, sob a acusação de feitiçaria, perturbação da ordem pública, e outras razões movidas pelo preconceito contra uma religião de pretos e pobres.

A social, movida pelo pavor de uma sociedade racista, que nega veementemente suas origens negras e ameríndias, e valoriza até hoje o efeito das migrações de europeus e da consequente miscigenação como salvação do povo brasileiro, por nos permitir "melhorar a raça" e reduzir gradualmente a carga genética afro-ameríndia que corre nas veias desse povo, como se essa fosse a única e derradeira oportunidade de tornar o Brasil um país civilizado.

E, principalmente nos dias de hoje, as religiões afro-brasileiras sofrem a discriminação advinda de outras religiões, essencialmente as neopetencostais radicais. Com seu discurso fundamentalista e seu poder econômico os neopetencostais demonizam as práticas umbandistas e também as dos candomblecistas, tratando-as como um mal a ser expurgado, o que os leva a praticar atos de violência como a invasão de terreiros seguida da destruição das imagens de seus altares, como se viu no Rio de Janeiro, no mês de junho deste ano do centenário da Umbanda.

Por ser, desde a origem, uma religião sincrética, a Umbanda sempre esteve aberta à novas influências e ao longo desses cem anos sofreu inúmeras transformações que criaram uma nova característica para a religião: a maior unidade religiosa da Umbanda está na diferença.

Não há uma, mas várias umbandas. Cada casa é diferente, não só pelo sistema de organização mas pelos conjuntos de práticas rituais que, em função dessa multiplicidade de influências, tornaram-se muito diferentes.

Num imenso universo de correntes umbandistas - africanizadas, esotéricas, kardecistas etc. - as misturas e trocas de influências, e suas múltiplas combinações, criaram uma diversidade ritual tal qual a miscigenação do povo criou uma diversidade de matizes na pele dos homens desta nação. O que contribui para reforçar ainda mais a identidade genuinamente brasileira da Umbanda.

Infelizmente, dentro do próprio movimento umbandista, essa mesma diversidade que enriqueceu o culto criou dentro dele práticas discriminatórias, especialmente no que se refere às matrizes africanas e ameríndias.

Algumas correntes tratam as influências africanas e ameríndias como corruptelas rituais, práticas primitivas a serem abolidas, reproduzindo o mesmo preconceito racista e cristão-fundamentalista que perseguiu a Umbanda ao longo desse século de existência.

E valendo-se desse discurso tais correntes ampliam o seu séquito e aproveitam-se da ausência de uma unidade para tentar instituir, através da publicação de livros diversos, uma codificação para a religião, afirmando exclusivamente suas visões e discriminando as práticas que não coadunam com as suas. Trocando em miúdos, essas iniciativas contribuem para enfraquecer a multiplicidade que se tornou a principal característica da religião.

Apesar de todas essas dificuldades enfrentadas pelo movimento umbandista, eu tenho um imenso orgulho por ter nascido dentro de um terreiro de umbanda. Por minha mãe saber que me esperava em seu ventre pelas palavras de um caboclo antes que pudesse notar pelos sinais do corpo. Por fazer parte, desde que nasci, há vinte e seis anos, dessa história, hoje centenária. E de ter enfrentado o preconceito me recusando a esconder minha religião a quem interessasse saber.

Desejo, para a Umbanda, muitos séculos de vida. Que ela continue sua saga gloriosa sem jamais esquecer-se da caridade, que é seu princípio fundamental. Que ela não se acanhe diante do preconceito e da intolerância. E que se fortaleça, cada vez mais, em sua própria riqueza e diversidade, que refletem a beleza de seu berço esplêndido, a terra brasileira e o seu povo, os verdadeiros heróis civilizadores desse país.

Agô, Babá! Kolofé!
Diego de Moraes Moreira.
Filho de Zambi e Oxalá. Afilhado de Pedra Preta da Guia e Jurema. Cambono de Maria Fagundes. Protegido e guiado por Caboclo Arruda. E amigo de seu Zé Pilintra.

segunda-feira, outubro 27, 2008

SOBRE O RESULTADO DAS ELEIÇÕES NO RIO

Pesquisei no site do TRE-RJ e no site Raio X da Eleição (do UOL) os números do pleito desse último domingo que elegeu Eduardo Paes para prefeito da cidade do Rio de Janeiro de 2009 até 2012. E foi possível identificar claramente o que já se sabia: vivemos em uma cidade partida e tal divisão se manifestou nos números dessa eleição. Vejam os dados por zona:

Zona Central
Paes - 50,2%
Gabeira - 49,8%


Zona Sul
Paes - 29,4%
Gabeira - 70,6%

Zona Norte
Paes - 51,6%
Gabeira - 48,4%

Zona Oeste
Paes - 57,5%
Gabeira - 42,5%

Vamos às primeiras considerações.

No Centro, houve forte equilíbrio entre os dois candidatos com diferença muito pequena a favor de Paes. O novo prefeito ganhou melhor (56% a 44%) na Zona Eleitoral 02, do Centro, enquanto Gabeira ganhou melhor (57% a 43%) na Zona Eleitoral 204, da Saúde.

Na Zona Sul, a vitória de Gabeira foi incontestável. O candidato do Partido Verde ganhou em todas as Zonas Eleitorais, com grande diferença para Eduardo Paes, que conseguiu no máximo 40% dos votos na Zona Eleitoral 164 (Laranjeiras), enquanto Gabeira conseguiu até 76% dos votos, nas Zonas Eleitorais 16 (Laranjeiras) e 212 (Jardim Botânico).

Na Zona Norte, ao contrario do que se alardeou, a vitória de Paes não foi tão larga quanto se esperava. A maior vitória do novo prefeito, na Zona Norte, ocorreu na Zona Eleitoral 118, em Cascadura, com 65% dos votos. Na porção mais próxima ao Centro (Tijuca, Maracanã, Vila Isabel e adjacências), Gabeira ganhou com larga vantagem a exemplo da Zona Eleitoral 07 (Tijuca) com 70%, da Zona Eleitoral 228 (Maracanã) com 69% e da Zona Eleitoral 173 (Vila Isabel) com 68%. As outras áreas do Subúrbio que elegeram Gabeira foram o Méier e Del Castilho. No entanto Paes ganhou mais votos na maioria das Zonas Eleitorais que cobrem bairros como Anchieta, Marechal Hermes, Olaria e Madureira.

No entanto, a vitória de Paes só se confirmou efetivamente com os votos do grande colégio eleitoral da Zona Oeste. A votação mais expressiva de Gabeira nessa área foi na Zona Eleitoral 119, da Barra da Tijuca, onde obteve 70% dos votos. Gabeira também ganhou nas outras três Zonas Eleitorais da Barra (09, 13 e 179). Mas perdeu em todas as outras 27 Zonas Eleitorais da Zona Oeste, onde a maior vitória de Paes ocorreu na Zona Eleitoral 241, de Santa Cruz, com 66% dos votos.

Alguns detalhes importantes: dos 4.579.365 de eleitores, apenas 3.652.115 compareceram e manifestaram sua vontade escolhendo um prefeito ou votando nulo ou em branco. Foram mais de 900 mil ausências de eleitores, entre eles os idosos e os que viajaram para aproveitar o feriado do serviço público dessa segunda-feira. No entanto, a diferença entre os dois candidatos no final do pleito foi de pouco mais de 55 mil votos. O voto em branco ou nulo registra uma posição política, um desejo de não escolher nenhum dois dois candidatos. Já o número de ausências diante da pequena diferença entre os candidatos comprova que a situação poderia ter sido diferente.

sábado, outubro 25, 2008

UM GRANDE DIA

A última quinta-feira teria sido um dia absolutamente normal se não fossem os ocorridos que pipocaram a partir do início da noite. Havia semanas que eu tinha comprado um caderno do Le Monde Diplomatique Brasil e até então não tinha lido uma página sequer. Naquele fim de tarde, enfim, eu lia algumas coisas sobre a América Latina e sobre a crise financeira atual.

Por volta das 19 horas peguei meu telefone celular e vi várias ligações perdidas, dentre elas uma do Nando e uma do Zé Eduardo. Liguei pro Nando.

- Alô? - ele atendeu.

- Fala, meu irmão, como é que você tá?

- Fala, cara! Beleza!

- E aí, meu velho, você me ligou?

- Pô... é, cara. Te liguei pra saber como é que você tá.


Se há uma coisa que me comove é receber o telefonema de um amigo que liga só pra saber como é que eu estou. Conversamos, em pouco tempo, sobre várias coisas, trabalho, família e ficamos de marcar um almoço pra botar o papo em dia e pra ter o prazer de desfrutar da companhia amiga. Desligamos

E toca o telefone de casa.

- Alô?

- Diego?

- Fala, Zé!

- Já sabe onde vai ver o jogo?

- Não! Estou nervosíssimo com isso!

- Então você vai ver comigo!

- Onde?

- No Maraca, num camarote que eu consegui pra gente.

- Caralho, é
mermo? - raramente eu falo mesmo.

- Te encontro daqui a pouco no prédio do meu irmão. Ele vai com a gente.

- Beleza. A gente se fala.


E fui. Nos encontramos e andamos até o estádio. Caminhava em direção ao guichê para retirar as credenciais quando ouvi meu nome.

- Diego!

Era o Rodrigo Ferrari, o Digão da Livraria Folha Seca, que estava por ali com o chef Santos, do Botequim Casual para encontrar um amigo e assistir a partida. Trocamos um abraço fraternal e nos falamos rapidamente, porque já ia começar o jogo. E que jogo.

Entramos. Tudo liberado no camarote 27. Comes e bebes pra lá e pra cá, e a pelota rolou. Não pretendo fazer nenhum jornalismo esportivo aqui. O jogo foi bom pra caralho. Ponto. Ganhamos de dois a zero no primeiro tempo e de três a zero no segundo. Quando o placar ainda marcava quatro a zero, a torcida gritava olé até para as bolas recuadas para o goleiro. E pedia:

- Mais um! Mais um! Mais um!

Eu não acreditava no que via. O Coritiba, que não é um time-merda nem de longe, estava totalmente anulado pelo Flamengo. Não fez nada. E o rubro-negro arrumou um pênalti no final, que foi (bem) batido pelo goleiro Bruno. Pra fechar o paletó de madeira do time paranaense e sepultá-lo no solo do Maracanã. E aquela noite esplêndida transformou um dia comum e sem graça num grande dia.

segunda-feira, outubro 20, 2008

O PEIXE ASSADO QUE MAMÃE FEZ

É verdade. Mamãe anda nos presenteando com seus dotes culinários adquiridos ao longo dos seus 64 anos de experiência. Nesse fim de semana ela veio aqui pra casa e nos deu o prazer de sua companhia. Como se não bastasse, foi pra cozinha no domingo. Horário de verão, todo mundo acordou tarde. O almoço saiu, então, muito mais tarde do que o nosso habitual. Por isso só fotografei o peixe antes de ir para o forno. Quando ele saiu... não deu tempo.

Debaixo de tomates, cebolas, pimentões, batatas, azeitonas e tempero (que tempero!) há um filé de peixe especial.

Abraços!

sábado, outubro 18, 2008

O LARGO DAS CINCO BOCAS

Num dos finais de semana de setembro, eu, Lucimar, Larissa e Zé Eduardo levamos mamãe para visitar o Paulinho, a Cristiane e a Tia Elza em Jacarepaguá. O Paulinho tinha passado semanas internado num hospital por ter sofrido envenenamento ao aplicar inseticidas na padaria que ele comanda com a Cristiane. Conhecemos a casa, passamos um bom tempo por lá, e conversamos horas sobre tudo, sobre as coisas da vida.

Quando saímos de lá, entramos no carro e sentimos que ficou faltando alguma coisa. Alguém faz um comentário, outro responde... tudo sem muito ânimo. Até que o , inspirado, resolve revelar o que pensava.

- Se vocês topassem, sabe aonde eu queria ir?

Cinco segundos de silêncio. Minha respiração ficou ofegante. Tinha certeza de que o tiraria da cartola o melhor programa para aquele fim de noite. Mamãe perguntou:

- Aonde?

- No Largo das cinco bocas.

O ainda pronunciava o "Bocas" quando eu disse:

- Eu topo!

Lucimar e Larissa também responderam, uma depois da outra:

- Eu também, eu também!

O Largo das cinco bocas é um encontro de caminhos - uma encruzilhada - onde o transeunte não encontra nem três, nem quatro, mas cinco possibilidades, cinco escolhas, cinco destinos para percorrer. É, também, a confluência que reúne os habitantes dos arredores, um ponto de encontro onde se sente a verve suburbana com o povo na rua.

E fomos. De terça-feira até domingo os comerciantes armam suas barracas e vende-se de tudo: pastel, cachorro-quente, crepes, caldos, sopas, salpicão, pizza e, claro, cerveja. Geladíssima em qualquer buteco das esquinas. Um troço bonito demais. Quando chegamos lá encontramos o largo assim.

Paramos em uma das barracas e compramos vários pastéis. Sentamos diante de um trailer e pedimos sanduíches. Ficamos ali, jogando conversa fora, e comentando, obviamente, sobre como é bom aquilo ali.

Durante dois anos, enquanto fui aluno da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, dentro da Fio-Cruz, em Manguinhos, o largo das cinco bocas esteve na minha rota de volta pra casa, portanto eu passava por ali todos os dias, de segunda à sexta-feira.

Memórias mais antigas daquela encruzilhada eu também tenho posto que o eixo Ramos-Olaria-Bonsucesso sempre fez parte dos meus caminhos desde a infância. Dos cinco até os dezoito anos eu cortei meus cabelos na rua Sizenando Nabuco, morro do Amorim, em Manguinhos, na barbearia do Manuel. Na volta sempre passava por ali.

E um dos troços que sempre me chamou mais atenção ali era a antiguíssima Veterinária Lassie. No meu inconsciente, tenho a sensação de que ela sempre existiu. Há uma na rua Barreiros, que leva até o Largo, e outra bem na esquina do Largo. Não resisti e fotografei. Notem que o telefone no letreiro ainda tem apenas sete dígitos e não oito como temos atualmente. Na época da mudança esse letreiro já era velho.

E ficamos ali, beliscando, bebendo e vivenciando tranquilamente aquele lugar, com o qual possuo identidade profunda. Nenhum sinal de violência - apesar do horário - nos incomodou. Ao contrário, ficamos muito à vontade, como quem está realmente em casa. Deixei o largo palitando os dentes em público, troço que já fiz em Ipanema - no quadrilátero do charme (náuseas!) - gerando olhares de reprovação. Ali eu tinha certeza de que em cada uma das cinco bocas alguém fazia rigorosamente a mesma coisa, como eu, sem ser perturbado com a babaquice dos outros.

Pra quem não conhece, fica a dica. O Largo das Cinco Bocas é, pra mim, uma das "mecas" do subúrbio. Traduz a alma suburbana e merece muito uma visita - um cortejo, uma romaria, seja lá o que for - que valerá a pena pra quem gosta do troço.

Abraços!

quinta-feira, outubro 16, 2008

A RABADA QUE MAMÃE FEZ

Quem acompanhou a série sobre o Samba do Irajá sabe que nós aqui de casa estivemos naquela freguesia no dia quatro de outubro pra comemorar o anversário do Luis Henrique e inaugurar a churrasqueira do Doce Refúgio com um samba pra nunca mais esquecer.

Pois eu, Lucimar e Talumejwá dormimos na casa de mamãe porque era mais perto do Irajá, porque eu votaria por lá no pleito do dia seguinte e, claro, porque queríamos ficar pra ter o prazer da companhia de mamãe, Larissa e Zé Eduardo no dia seguinte. E, invariavelmente, mamãe capricha no almoço de domingo, especialmente quando estamos lá.

Dona Maria Luiza é, pra mim e pra muitos, uma sumidade na cozinha. Tudo o que eu mais gosto, em termos de regabofes, ela faz excepcionalmente bem. Cozidos, dobradinha, angú à baiana, bobó de camarão, caldo verde - essas coisas - ela faz com maestria.

Meu avô, mineiro nascido em Angustura - antigo distrito de Além Paraíba - e criado em Carangola, era bastante exigente com o que sai das panelas. Nunca reclamou. Só botava, as vezes, uma pimenta a mais, daquela que ele mesmo fazia em casa, do jeito que aprendeu na roça. Caso seríssimo. A pimenta do velho tinha que ser respeitada. Uma gota no ensopado era o suficiente pra muita gente.

E naquele domingo mamãe fez rabada. Um espetáculo! Gostosa demais de ver e de comer. O cheiro, então, foi longe. Daqueles de atrair manifestações públicas de beatas criminalizando o pecado capital da gula e de mulheres bulímicas e anoréxicas pedindo a prisão pertétua de mamãe. Crime é não se fartar.

Não sou muito ligado nesse negócio de receitas, por isso deixarei apenas a imagem que registrei da rabada. Dou a dica para minha irmã, Larissa Moreira, que escreve em seu blog sobre casa, cozinha e afins, que publique a receita de mamãe. O cheiro e o sabor ficarão só pra quem teve o privilégio de provar.


Abraços!

quarta-feira, outubro 15, 2008

SAMBA DO IRAJÁ IV

A madrugada já abria suas portas quando fiz o último registro em vídeo que conclui essa série improvisada sobre o Samba do Irajá. Minha irmã, Larissa Moreira, que definitivamente é um ser do dia, àquela altura já me dava as primeiras cutucadas.

- Vamos?

Era quase uma e meia da manhã. Se o samba não estivesse excepcional, ela certamente teria me chamado pra ir embora às onze. Mas antes das despedidas, tive tempo de gravar o Tito cantando um samba do Arlindo Cruz, O meu lugar.

Antes que digam que o malandro se vendeu fazendo sambinhas pra globo e outras coisas, quero dizer que nesse samba ele foi extremamente feliz, não só pelo conjunto letra e melodia mas principalmente porque seu título se adéqua perfeitamente ao conceito de lugar na visão da geografia humanística.

Há poucos dias escrevi o seguinte em meu outro blog (conceitosetemas.blogspot.com): "muito além de um espaço físico, de uma paisagem repleta de elementos e de referências peculiares passíveis de descrições objetivas e racionalizadas, o lugar, na visão humanística, constitui-se como uma paisagem cultural, campo da materialização das experiências vividas que ligam o homem ao mundo e às pessoas, e que despertam os sentimentos de identidade e de pertencimento no indivíduo. É, portanto, fruto da construção de um elo afetivo entre o sujeito e o ambiente em que vive”.

É exatamente essa relação de identidade e de pertencimento que o samba apresenta. E isso traduz o sentimento das pessoas que amam o lugar onde vivem, seu bairro, sua rua, sua cidade, ou seja, o lugar onde as pessoas se sentem em casa.

E isso é algo que me emociona profundamente, porque o lugar do Arlindo, que é Madureira, "com seus mitos e seres de luz, é bem perto de Oswaldo Cruz, Cascadura, Vaz Lobo e Irajá". E Irajá é a terra do nosso samba familiar, o que nos faz construir elos afetivos cada vez mais profundos com o subúrbio do Rio.

Abaixem o volume dos alto-falantes. O Tito tem um gogó poderoso, fortíssimo. Fosse ogan, seria capaz de fazer até ateu receber caboclo e preto-velho em terreiro de Umbanda, puxando só na palma, dispensando até o rufar dos atabaques. Reparem que a Márcia Viegas, vai embora do Doce Refúgio enquanto o samba rola. A vontade era de ficar - no início do vídeo ela ainda está batucando - mas a viagem pra tocar com o Jorge Aragão, e eu acho que o show era no Nordeste, não podia mais esperar.

Na despedida ainda pude ouvir a rapaziada tocar o Samba do Irajá, composto pelo tio Nei, numa lembrança do velho Luiz - seu pai - que chegou naquela freguesia no início do século XX. E bateu uma saudade agúda do velho Mizoca. E com a saudade, uma lágrima, expressão maior das nossas humanas emoções.

Tenho impressa no meu rosto
E no peito, lado oposto ao direito
Uma saudade – que saudade!
Sensação de na verdade
Não ter sido nem metade
Daquilo que você sonhou
São caminhos, são esquemas
Descaminhos e problemas
É o rochedo contra o mar

É isso aí, ê Irajá
Meu samba é a única coisa que eu posso te dar

Saudade veio à sombra da mangueira
Sentou na espreguiçadeira
E pegou um violão
Cantou á moda do caranguejo
Estendeu a mão pra um beijo
E me deu opinião
Depois tomou um gole de abrideira
Foi sumindo na poeira
Para nunca mais voltar

É isso aí, ê Irajá
Meu samba é a única coisa que eu posso te dar.

terça-feira, outubro 14, 2008

SAMBA DO IRAJÁ III

Que o samba do Irajá do dia quatro de outubro desse ano de 2008 começou bonito pra cacete, isso, quem passou por aqui antes, já viu. Jantar servido, churrasqueira aprovada, tudo dentro do regulamento.

Mas o que venho dizer e mostrar hoje é que o samba continuou bonito. E ficou ainda mais bonito quando o Jorge Moreno assumiu o microfone pra cantar uns troços belíssimos, que emocionaram quem estava por lá, e depois fazer o barraco pegar fogo. Cantando um samba do Zé Catimba, malandro que foi compositor da Imperatriz Leopoldinense durante décadas e parceiro constante de Martinho da Vila, o bom Jorge Moreno botou a rapaziada pra cantar. E o troço ficou bonito pra cacete.

Meu cunhado, o Zé Eduardo, de olhos transmutados em duas poças d'água, me disse qualquer coisa em tom de agradecimento por estar ali. Lembrava do pai, eu sei. Lembrava do pai que, tudo consta, adoraria estar ali. Mas o couro comeu mesmo com a mistura de uns sambas do Djavan - e samba é o que há de bom na obra do cara.

A turma da batucada não se fez de rogada e esfolou a mão no couro. Mariângela e Milena aproveitaram pra quebrar tudo nas cadeiras ao som da rapaziada. E foi com essa mistura que eles fecharam o primeiro módulo. Já passava de meia noite e a batucada ainda voltaria muitas vezes varando madrugada.

Saca só!

Abraços!

quinta-feira, outubro 09, 2008

SAMBA DO IRAJÁ - II

Seguindo com a narrativa do inesquecível encontro do último sábado, no Doce Refúgio, em Irajá, trago algumas imagens que registram a presença de parte da rapaziada que participou da festa (foram mais de 80 pessoas!, mais de 80!). Um encontro familiar que contou com a presença de amigos do Luis Henrique, amigos da turma do Irajá, vizinhos e o escambau!


Cheguei pontualmente às nove da noite e fui recebido pelo Budé, de camiseta regata amarela, que pilotava a gigantesca churrasqueira.

- Fala, Budé!

- Ô, meu querido!

- E aí, como é que você , malandro?

- Agora melhor, porque você chegou, garoto!

Abraços efusivos em todos - cumprimentei todas as pessoas que estavam na festa - e depois abri a primeira. Meu cunhado, o Zé Eduardo, mandou a lei seca às favas e me acompanhou naquela gelada. A turma foi chegando, as cervejas - intermináveis, diga-se, - foram saindo até que rolou a homenagem ao velho Mizoca, como contei no primeiro texto.

Havia comida para um exército. Meu sogro, que fazia feijoada pra 400 pessaoas com a facilidade de quem frita um ovo, certamente ficaria feliz com aquela bagunça. E o jantar saiu. O Nelson, malandro bom à bessa de bola e conhecido como Jacaré, ficou pilotando o bar, distribuindo as cervejas para a rapaziada e comandando o serviço do jantar, sempre com o avental preto e um pano de prato pendurado no ombro direito. Veja as fotos do farnel:



A churrasqueira foi um dos maiores destaques da festa e sua inauguração um dos motivos para o encontro da rapaziada. Segundo o Fagner, nosso amigo, advogado - e humorista nas horas vagas - a construção da churrasqueira assumiu dimensões de obra do PAC devido à sua estrutura faraônica e à incrível solução de engenharia para dispersar a fumaça. Notem as fotos!

Duas lâmpadas de 100 watts pra eliminar o breu da galeria - isso não é uma churrasqueira, é uma galeria de carnes! - estrutura em tijolo com acabamento de granito e - vejam! vejam! - um imenso coletor metátilco que leva toda a fumaça para um cano, altíssimo, que faz as vezes de chaminé. Se fosse um pouquinho mais alto, o cano precisaria daquela luz vermelha para alertar e afastar os aviões.


Ainda com o jantar sendo servido, a turma do batuque e da melodia foi chegando, passando o som, e esquentando a mão no couro pra fazer o samba rolar madrugada a dentro. Nesse vídeo, vê-se a turma fazendo o "esquenta" antes de começar pra valer. A Marcia Viegas, percussionista da mão cheia - o Jorge Aragão não abre mão do auxílio luxuoso dessa moça na sua banda - puxou um batuque no pandeiro, o Doceu, no violão, chamou o restante da turma - "vem, vem, vem..." - e o que saiu foi isso aí, ó. O povo cantou e aplaudiu como se fosse o fim. Mas era só o começo.




Até breve!

terça-feira, outubro 07, 2008

SAMBA DO IRAJÁ

Meu cunhado Luis Henrique fez aniversário na última sexta-feira, três de outubro. Motivo mais do que suficiente pra fazer um samba comemorativo. No entanto, há umas duas semanas, o Tito, também meu cunhado, irmão mais velho de Luis Henrique e de minha digníssima, ligou aqui pra casa avisando que a churrasqueira do Doce Refúgio – projeto antigo do meu sogro, o velho Mizoca - estava pronta e seria inaugurada no sábado, quatro de outubro. Era um convite. Ou melhor, uma convocação. O aniversário e a inauguração da churrasqueira seriam celebrados com um samba em grande estilo no Doce Refúgio.

Batizado com esse nome pelo velho Mizoca, aquele quintal foi palco dos encontros do dia-a-dia da família e de outros momentos mais do que especiais. Já recebeu artistas brasileiros – e estrangeiros – da mais alta categoria, membros de gerações antigas e novas do samba carioca. Já passaram por ali músicos como o mestre Nei Lopes – membro da família; Leny Andrade, sempre acompanhada pelo grande Lúcio Nascimento, também membro da família e baixista de primeira linha; Marcel Powell, filho do grande Baden, de quem herdou um talento fortíssimo para deslizar nas cordas do violão; Diogo Nogueira, filho do grande João, além de outros que não me ocorrem agora.

E a noite foi esplendorosa, tão rica em todos os seus detalhes que merecerá uma série de postagens que farei contando a vocês leitores, mais raros do que chuva em deserto, que passam por aqui para ler as minhas mal traçadas linhas com alguma freqüência, como foi que tudo ocorreu nessa festa. Proponho que assistam aos vídeos que fiz. Quem tiver a sensibilidade um pouco mais aguçada perceberá a beleza do momento.

Notem como o Tito confere um tom solene – a ocasião merece – ao discurso que introduz a homenagem feita ao velho Mizoca. Notem que é com gratidão que ele devolve o carinho e a amizade do Varé, presidente do Clube Pau-Ferro, que emprestou as mesas e cadeiras para a festa. Notem como Luis Henrique chora imediatamente ao ver a imagem do pai ser exposta para os aplausos de todos, e como Tia Eninha e Tia Gloria - mãe do Tito, do Osnir (o Neném) e da Mariângela, também choram e se abraçam, conferindo ao momento uma emoção ainda mais profunda.

E foi só o começo de uma festa sem hora pra acabar.

sábado, outubro 04, 2008

LUCIMAR E TALUMEJWÁ

Nesse dia quatro de outubro, de São Francisco de Assis, sincretizado com Ifá/Orumilá em Cuba, dedico as postagens do dia aos animais que vieram povoar minha casa: o Picolino e o Talumejwá, sendo este último enviado pelos desígnios de Orumilá. Explico. O odu-ifá de minha digníssima senhora diz que ela precisa ter uma cão em casa sempre, pois isso lhe trará energias positivas para a vida material e, principalmente, espiritual. Mirando os olhos de Talu pela primeira vez, ela sentiu por ele uma afinidade incompreensível aos céticos e um amor quase maternal.

É bem o que se vê com os dois juntos nessa foto:

Abraços!

domingo, setembro 28, 2008

PRA QUEM GOSTA DE NÚMEROS NO FUTEBOL

O clássico Gre-Nal de hoje foi uma decepção profunda para aqueles que são apaixonados pelas análises numéricas, matemáticas e oswald-de-andradeanas no futebol. Porque, pra esses, o time que tem os melhores números no decorrer do jogo, tem vantagens sobre o adversário. Mas nem sempre é assim, como ocorreu hoje no clássico gaúcho. Veja só se não tenho razão.

Número de faltas (aos 20 do primeiro tempo)

O jogo estava empatado em um a um, com o grêmio, que começou perdendo com um gol aos quatro minutos, batendo mais.

Inter – 2

Grêmio – 7

Aos 20 do segundo tempo as faltas estavam assim:

Inter – 15

Grêmio - 20. O tricolor gaúcho continuava batendo mais e essa é a única vantagem do Inter.

Número de finalizações  (aos 24 do primeiro tempo)

O grêmio teve o triplo de chances mas só aos 19 conseguiu o empate.

Inter – 2

Grêmio – 6

Número de passes errados  (aos 41 do primeiro tempo)

Mesmo trocando muito mais passes errados, o Inter guardou mais dois e cravou três a um no placar. 

Inter – 10

Grêmio – 7

E faria mais um aos 45.

Número de desarmes  (aos 12 do segundo tempo)

Mesmo desarmando mais, o Grêmio não consegue fazer disso uma vantagem no resultado.

Inter – 11

Grêmio – 16

E o Inter, ao contrário do que os números indicam, conseguiu o melhor resultado, goleando e até tripudiando do o adversário, com a galera gritando olé, o goleiro fazendo embaixadinha com bola recuada e o escambau. Porque, no futebol, a matemática funciona para os gols. Quem faz mais e leva menos, ganha. É simples. O resto é conversa fiada.


[ Foto: Alexandre Alliatti - globoesporte.com]

Vitória do Inter. O campeonato está mais do que embolado, com chance pra todo mundo que está na frente. Ainda mais agora que o Colorado sepultou o tricolor gaúcho no Beira-Rio.

Abraços!

quinta-feira, setembro 25, 2008

MAIS UM MORADOR

E a quantidade de moradores em minha casa só faz crescer nos últimos meses. Em julho, recebemos Talumejwá, como falei aqui. Em agosto foi a vez do Luis Henrique, meu cunhado, que está passando uns dias aqui em casa, aproveitando a calma do ambiente pra meter a cara nos estudos. E agora, em setembro, foi a vez do Picolino, um Coleiro Bigodinho que meu cunhado deu de presente para a irmã.

Lembro sempre dos coroas, amigos de meu pai e de meu avô, que criavam coleiros lá no Engenho da Rainha. Aposentados, eles levavam os passarinhos bem cedo pra tomar o sol da manhã. E no subúrbio se fazia uma sinfonia. Lá em casa nós criávamos um Tiziu e dois Gold Diamonds australianos. Lucimar, durante muito tempo, criou o Tarcísio, o papagaio que a avó dela ganhou de presente e batizou numa homenagem ao Tarcísio Meira, seu ator preferido.

Antes que os politicamente corretos me critiquem por criar uma ave selvagem em casa, explico que não soltarei o bicho pois, já que foi domesticado por aquele que o prendeu, ele não sobreviveria muito se solto nos céus da cidade. Já procurei saber tudo sobre a certificação de pássaros e vou me tornar um criador amador com registro no Ibama, substituindo a gaiolinha por um viveiro para que o mais novo membro da família tenha mais espaço.

O nome Picolino foi dado por minha digníssima. Originalmente, esse era o nome de um pinguim que aparecia no desenho do Pica-pau, e que a patroa adorava. Na infância ela ganhou um passarinho e deu à ele o nome do pinguim. Agora, relembrando os velhos tempos, ela resgata o nome do antigo passarinho e batiza o Coleiro Bigodinho de Picolino.

E não é que as cores do Coleiro são semelhantes à do pinguim do desenho? Ele tem o peito branco, as costas pretas, a cabeça preta e uma mancha branca em cada uma das bochechas, que inspiram o nome popular de Bigodinho. Vejam vocês:



E pra quem não se lembra, o desenho do Pinguim, da turma do Pica-pau.



Abraços!

terça-feira, setembro 23, 2008

EVEREST ATLÉTICO CLUBE

Fundado em 28 de abril de 1953, com sede na Rua Acari, em Inhaúma, o Everest Atlético Clube foi palco de algumas peladas que participei nos tempos de garoto. Comecei a nutrir profunda simpatia pelo clube ao saber que o seu Darci, coroa boa praça que era porteiro do meu prédio, tinha sido um dos fundadores desse atlético inhaumense. Depois, quando eu fiz a bola rolar com meus amigos por lá, o clube garantiu uma vaga especial do lado esquerdo do meu peito.

Antes que se enganem os poucos que passam por aqui, quero dizer que sou flamenguista desde sempre, mas o amor à camisa rubro-negra jamais encontrou problemas em compartilhar um espaço no meu coração com o carismático time do subúrbio. As coisas não se misturam por aqui.

Acontece que, dia desses, um aluno me surpreendeu aparecendo com uma camisa do Everest em sala de aula. Explico. O Fernando é desses que colecionam camisas de times de futebol, e nos dias de aula de educação física – que coincidem com as minhas aulas – ele leva duas ou três camisas para o colégio. Elas ficam expostas na sala para, como ele diz, embelezar o espaço de aula. Jamais reprimi tal gesto, e até estimulo, pra conhecer a diversidade da coleção do garoto de perto.

Então, cheguei na sala e dei de cara com o manto amarelo e azul. Reconheci a camisa imediatamente. Olhei pro Fernando e fiz uma pergunta que só eu sabia que era retórica:

- O que é isso?

Ele prontamente respondeu:

- Essa é do Everest, clube da terceira divisão do Rio, professor.

- Eu sei – respondi, já com a camisa nas mãos.

- Conhece? – ele perguntou, ignorando minha história com o clube.

- Claro, claro – respondi com olhos de menino.

Não conseguia parar de sorrir. Um sorriso largo e mudo, de quem é transportado para a infância, vivendo um instante daqueles que, se a gente pudesse, eternizava. Não sei de onde veio a idéia ou como surgiu, mas quando vi, eu já tinha sacado o celular do bolso e depositado nas mãos do Fernando, pra ele, ao menos em parte, eternizar aquele momento.

- Bate! – disse.

E ele fez isso aqui, ó:


Abraços!

quarta-feira, setembro 17, 2008

VELHOS AMIGOS

Raramente a vida me presenteia com o encontro de velhos amigos. Nos últimos anos tenho feito alguns poucos mas bons amigos, no entanto vi muito pouco aqueles que me cercaram na infância e na juventude. Alguns compareceram ao meu casamento. Outros casaram-se e eu pude comemorar com eles seus enlaces. E há aqueles que eu encontrei por sorte, sem data marcada, porque o destino quis. Quem estiver atento vai perceber nesse texto que foi através dos meus amigos que eu conheci os recantos mais belos do subúrbio, meu berço e inspiração.

Em dezembro de 2006 o meu velho amigo Daniel Simões casou-se com a amiga Marina. Foi motivo para o encontro de vários amigos, registrado aqui.

Da esquerda para a direita: Daniel Meirelles, Carlos Bojon, Aline Maia (atrás), Daniel Simões (o noivo, vestindo a farda da FAB), Alice Barreiros, Rubens e eu. Falei de todos eles e de outros amigos quando escrevi A SANTA DA RUA AIERA E OUTROS CASOS (leia aqui). Com eles, e outros amigos, eu conheci melhor a Vila Kosmos, a Vila da Penha, o Largo do Bicão, Vista Alegre e Irajá, entre outras freguesias.

Daniel é o nome de alguns dos poucos sujeitos que eu considero como meus melhores amigos. O Simões e o Meirelles, na foto, certamente fizeram parte desse time. O Meirelles, sempre excelente aluno em matemática, fez CEFET e acabou indo parar na Suíça, fazendo experimentos com anti-matéria. Voltou para casar-se com a Polyanna, em fevereiro de 2007. O Simões, que sempre sonhou pilotar caças e até me levou na Base Aérea de Santa Cruz, onde entramos num F-5, viveu duas vezes o esforço de passar para a EPCAR (na primeira foi reprovado injustamente por um problema de joelhos que não existia) e depois encarou quatro anos de Academia da Força Aérea. Depois de casar-se foi para Roraima, onde está até hoje.

Rubens e Carlos Bojon sempre foram camaradas pra toda hora. Certa vez, no treino para uma apresentação de capoeira na escola, eu quebrei o nariz do Rubens com um toque muito leve no rosto. Nervosíssimo, chamei a professora Miriam, de ciências, que já foi dessa pra melhor, deixando saudades por aqui. Ela ajudou a conter o sangramento e eu acabei fazendo a exibição de capoeira com outro camarada, o Felipe Barreto, que eu encontrei pela última vez, por acaso, em 2000.

Quem tem a sorte de ter como amigas os dois primeiros amores da vida? Eu tenho. A Alice Barreiros e a Aline Maia, que embalaram as emoções que vivi entre os doze e os treze anos de idade, são daquelas pessoas que eu só esqueceria se fosse um canalha. Porque o tempo passa e algumas pessoas fogem de nossa memória, mas essas amigas não.

E como é bom ter os amigos dentro de casa. Desde que nos casamos, eu e Lucimar - minha digníssima senhora – temos nos esforçado para trazer nossos velhos amigos pra cá. E eles vieram várias vezes, o que sempre nos alegrou muito. No ano passado recebemos essa turma aqui:

Da esquerda para a direita: Lívia, Viviane, Anne (em pé), eu (sentado), Lelê (agachado), Tatiana, Daniela (no colo) e Daniel. Com eles, e outros amigos, eu me inebriei da verve suburbana. Passei por Manguinhos, onde nos conhecemos, por Ramos, Olaria, Penha, Cordovil; pelo Méier, Engenho de Dentro, Deodoro, Realengo... E também por Niterói, São Gonçalo, Itaipu e pela Baixada, de onde veio minha digníssima senhora, que é Nilopolitana e me fez conhecer melhor a Pavuna, Anchieta, Ricardo de Albuquerque, Olinda e, claro, Nilópolis.

Há, aqui, um encontro de gerações. Explico. Todos nós passamos pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, da Fiocruz, em Manguinhos, e nos formamos técnicos em saúde. Exceto eu, claro, que saí da escola e segui o caminho que me levou à geografia. O Lelê é o mais antigo e foi aluno da Turma 91. Nós nos identificávamos assim porque a escola, fundada em 86, só tinha uma turma de trinta alunos por ano, num curso que durava quatro anos. Quando eu e o Daniel chegamos, na Turma 97, ele já era professor da escola. Daniel hoje também é professor da lá e trabalha com o Lelê. Eles são professores do meu primo João (leia o que escrevi sobre ele aqui). As meninas são da Turma 93, da qual fez parte minha digníssima senhora. Minha irmã, que não esteve nesse dia conosco, foi da Turma 94.

De certa maneira, todos fizeram parte da minha juventude, especialmente Daniel, que em questão de semanas virou um novo irmão. A ele eu ensinei os primeiros acordes do violão, que hoje ele toca com maestria. Freqüentei sua casa com a assiduidade de um membro da família. Dormia, ou caía, como dizíamos, lá pelo menos umas três vezes por semana, deslizando os dedos no braço do pinho até altas horas. Sua mãe virou minha mãe. Seu pai, meu pai. Seus primos, tios e avós, todos viraram meus parentes e eu conheci os caminhos e mistérios da Ilha do Governador. Nando, Vitor e Gordinho, grandes amigos desses velhos tempos, completavam aquilo que foi nossa banda até uns sete anos atrás.

E no último sábado eu tive a felicidade de encontrar um amigo da mais tenra idade. O Bráulio, ou gaguinho, era meu vizinho de porta, eu no 101 e ele no 102 do bloco 4 do PREV, na antiga Estrada Velha da Pavuna, no Engenho da Rainha. Durante a semana inteira a gente vivia uma coisa que só é possível no subúrbio. As duas portas, coladas uma na outra, passavam a semana inteira abertas. Minha mãe, sem bater, entrava no 102, abria a geladeira e pegava uma cebola emprestada. A saudosa mãe Fátima, mãe do Bráulio e do Bruno, que todo dia cozinhava bebendo uma cerveja gelada, fazia rigorosamente o mesmo lá em casa. E elas se anunciavam apenas assim:

- Ô, vizinha, vim aqui no Paes Mendonça e peguei uma cebola, tá?
- Ah, tudo bem! Daqui a pouco eu vou ali no Disco buscar uma batata.

Era assim. A geladeira da vizinha era o mercado mais próximo de casa e funcionava na base da troca. Só mudavam, de vez em quando, os nomes dos mercados. As vezes era Guanabara, Supermercados Rio, Rainha... Os rádios ligados tocando os LP`s das Escolas de Samba. O dia inteiro. Todo mundo mangueirense roxo. Roxo, não. Verde e rosa. O pai Jorge, o Camarão, era mangueirense mas foi um dos fundadores da Caprichosos de Pilares que, pela simpatia que eu tinha por ele, sempre foi minha segunda escola. Aqui o registro do encontro com o Bráulio, no último sábado.

Com esse irmão eu aprendi muita coisa. Se você, leitor, notar bem, verá que o Bráulio chora com o reencontro. Ele se emocionou, como eu também, com as lembranças daqueles tempos de outrora, com as memórias das estações vividas naquele Parque Residencial da Estrada Velha. Da guerra de água e de amêndoas. Do polícia e ladrão e do pique - esconde com mais de cinqüenta garotos e garotas; do futebol e da sangria no parquinho; da conquista do topo das árvores escaladas; das escorregadas com papelão nas gramas inclinadas; das aventuras ilícitas invadindo a piscina no ano novo e a quadra de futebol depois das dez da noite; e outras experiências que formaram nosso caráter, suburbano até as vísceras.

E com ele vou conhecer mais da freguesia de Campo Grande, onde hoje mora esse velho amigo, pai de cinco filhos e marinheiro do cais da Barão de Mauá. Fica registrada aqui a promessa de visitar o seu quintal, Gaguinho!

Para os meus amigos, velhos e novos, de quem eu falei aqui ou não, deixo o meu caloroso abraço, desejando que nos reencontremos em breve.

quinta-feira, setembro 04, 2008

O GOL QUE O LÉO MOURA NÃO FEZ

Os jogos do rubro-negro da Gávea não têm sido para torcedores cardíacos e vêm deixando os torcedores mais fanáticos hipertensos, até os que não são. E na noite de ontem não foi diferente. Encarando o Figueirense, freguês que perdeu de cinco a zero para o Mengão no Maraca, pelo primeiro turno do brasileirão deste ano de 2008, o escrete fez um primeiro tempo emocionante, principalmente porque dominou o jogo e guardou dois gols, um aos 18' e outro aos 40', sem deixar espaço para o adversário trabalhar. Um jogo primoroso, com uma escalação que incluiu três homens jogando como zagueiros e três como atacantes. Fim do primeiro tempo.

O segundo teve outra cara. Pior para a nação rubro-negra que viu o time apático tomar um gol aos 5' e ser fortemente pressionado durante os vinte e cinco minutos iniciais. Mas pra espantar o calor do Figueira bastou fazer mais um gol aos 34'. Bola na área, toque de cabeça pro meio do bololô, Marcelinho Paraíba cabeceia pro chão, o caroço resvala no pé direito do arqueiro e sobra para o moicano Léo Moura guardar no fundo do barbante e sair pro abraço. O Flamengo ainda tomou um gol aos 47', numa jogada individual mas garantiu a vitória e os três pontos. É o que importa, diriam aqueles que comentam o futebol exclusivamente segundo a perspectiva da matemática dos pontos, aqueles que usam expressões como G-4 e outras pederastias. Daqui a pouco vão chamar a Série A de G-20 do futebol brasileiro.

Só que nesse jogo um lance, que não resultou em gol, foi mais importante do que os outros. Foi o gol que o Léo Moura não fez, chutando de dentro do grande círculo na direção do gol ao ver que o goleiro adversário estava ridiculamente adiantado. A bola subiu pouco nos céus e ao descer não tomou o rumo do gol, passando, caprichosa, a menos de um palmo da trave, o que fez o goleiro voltar correndo pro gol e cair catando cavaco, todo estabanado lá dentro do saco de barbante. De tão perto, o banco de reservas chegou a comemorar o golaço que o moicano teria feito. Mas não fez. Precisei abrir mais uma cerveja pra suportar a pressão. Aliás, tenho enchido a caveira de forma industrial durante os certames do meu time.

E o que o Léo Moura fez - sem dúvida o lance mais bonito do jogo e talvez do futebol brasileiro nos últimos meses, depois daquele come desconcertante do Robinho num defensor do Equador, em pleno Maraca - foi uma daquelas jogadas que conferem magia ao esporte bretão. Foram eternos aqueles dois ou três segundos em que a bola viajou pelo espaço. Tivesse sido mais curta a trajetória da parábola descrita pela bola... tivesse sido maior a força de atrito com o ar... tivesse sido maior o vento contra...

Que importa? Fodam-se a parábola, o atrito e o vento contra. O irreal, aquilo que não é, pode ser maior e muito mais importante do que o real, aquilo que é, exatamente por que ele alimenta o desejo de transformar o não-ser em ser, porque permite sonhar imaginando a celebração de uma glória não obtida, por que essa ilusão nos faz meninos de novo, e nos faz reis de novo, ainda que só por alguns instantes, e só dentro nós.

No vídeo, os gols do jogo, os melhores momentos e, claro, o gol que o Léo Moura não fez. Recomendo assistir com o volume zerado pra não ter que ouvir as merdas que os comentaristas cospem.

Abraços!

sábado, agosto 30, 2008

HOJE É DIA DE SALGUEIRO!

Queridos, hoje é dia de ir para o Salgueiro. Já faz tempo que eu andava querendo escrever alguma coisa sobre o samba de dois malandros que conheço e guardo grande estima, o Simas e o Mussa. Mas enquanto isso, andei lendo o que os outros escreveram até agora.

Por aí, nos blogs, vi que meu mano Claudio Falcão ressuscitou o Geogordo 2, que andou calado por muito tempo, e tascou lá o texto Salgueiro, falando do samba desses dois, que ele conhece muito mais e melhor do que eu.

Quando estive pela última vez na quadra o Simas comentou que o Hermano Vianna tinha escrito algo sobre o Samba e publicado um texto do Mussa, que o Hermano tem como escritor da literatura brasileira favorito. Li o texto, publicado no blog Obra em Progresso.

Vi também que o Eduardo Goldenberg, malandro que comanda o balcão imaginário do frequentadíssimo Buteco do Edu, cravou um, dois, três textos sobre esse samba, com merecidos elogios ao trabalho dos compositores e uma discussão que aponta para a necessidade de resgate de uma tradição perdida ao longo do processo de transformação do samba enredo nas marchas que desfilam atualmente.

Foi ali que encontrei os outros textos que li falando sobre o samba dos caras. Um do Marcelo Moutinho, do blog Pentimento, com o título "Põe na roda o tambozeiro", em alusão a um dos versos do samba. Assim também fizeram Carlos Andreazza, do Tribuneiros, que pôs no título do seu texto o verso "Qual é o povo que não bate seu tambor?", e Bruno Ribeiro, do Botequim do Bruno, que intitulou seu texto com o verso "Festa na Aldeia".

E claro, li o que o Simas tinha pra dizer sobre o que andam falando do samba que ele compôs, no blog dele, o Histórias do Brasil no texto O samba no Salgueiro . E concluí que não tinha nada a mais pra dizer além do que estas feras já disseram. Portanto escrevo apenas para convidar os parcos leitores que passam por aqui com alguma freqüência para que compareçam à quadra do Salgueiro hoje para torcer pelo excelente samba desses caras.

Um abraço!

sexta-feira, agosto 22, 2008

BAR MANOLO - O RESGATE DO OPERÁRIO COMBALIDO

Deixei a portaria do meu prédio às seis e quarenta da manhã portando um celular sem carga no bolso da calça. Na mochila eu levaria os testes para aplicar em uma turma do turno da tarde. Levaria, se não a tivesse esquecido em casa. Então levava comigo apenas um objeto temporariamente imprestável, que não serviria nem pra controlar o tempo de minhas aulas naquela manhã.

Encarei três turmas durante quatro horas e meia de aulas distribuídas em seis tempos, das sete da manhã ao meio dia e quinze, com um intervalo de trinta minutos e outro de quinze entre as aulas. Acabei a jornada matinal cansado, me sentindo como se quem foi atropelado por vinte caminhões-cegonha, em seqüência e lentamente.

Voltei pra casa. Pus o celular para carregar a fim de usá-lo ao menos como relógio nos sete tempos de aula que ainda me restavam e fui, com fome, em busca de comida. Encontrei no fundo da geladeira uma quantidade insignificante de um macarrão com cara de que tinha sido feito antes da Laurásia se separar de Gondwana. E mais nada. Comi rápido. Afinal, não levou nenhum minuto pra comer aqueles cento e cinqüenta gramas de macarrão proterozóico. E além disso, eu estava com pressa.

Cutuquei o bolso da calça logo que pus os pés pra fora do portão do prédio movido pela certeza profunda de que tinha feito merda.

- Caralho, esqueci meu celular... Vou ficar sem relógio de novo...

Tinha visto as horas em casa, antes de sair. Estava muito atrasado. Não haveria tempo para voltar e buscá-lo. Pelo menos a mochila com os testes, desta vez eu não tinha esquecido.

Procurei economizar esforços nos três tempos de aula daquela tarde mas com crianças entre dez e treze anos é quase sempre impossível. Saí às cinco e meia da tarde do colégio com apenas uma moeda de vinte e cinco centavos no bolso, como um operário dramaticamente combalido após vender sua força de trabalho por sete horas e quinze minutos, ao longo de nove tempos de aula desde o início daquele dia. Entrei no banco e cumprimentei, mais uma vez, condoído - quase fúnebre - o meu cheque especial e segui pra Botafogo. Com fome.

Como um beduíno perdido no deserto, encontrei meu oásis momentâneo na esquina da Marquês de Olinda com a rua Bambina. Era o Bar Manolo. Entrei, encostando a portentosa barriga no balcão de aço e vidro, e pedi um sanduíche de pernil, no que fui atendido prontamente. Depois de partida, a peça foi levada para esquentar na chapa e servida no pão, com limão a gosto. Não pedi um chope porque em quinze minutos tinha que estar em sala de aula e, se eu pedisse o primeiro, tenho a mais absoluta convicção de que não sairia dali tão cedo.

Apesar do refrigerante pra acompanhar, o sanduíche bastou. Saí do Manolo novo. Pronto pra encarar com ânimo mais quatro horas de aula, entre seis e quinze e dez e meia da noite. Porque a atmosfera do bares, dos botequins, possui ares capazes de desconstruir a angústia do operário combalido pelo esforço diário, ainda que seja a fim de retomar a labuta depois de tragada a dose necessária de boemia. Hoje acabou. Amanhã tem mais.