quarta-feira, maio 30, 2007

TERCIARIZAÇÃO E INFORMALIDADE

O mundo contemporâneo, inserido num contexto de difusão dos componentes do meio tecnocientífico-informacional, é palco de transformações criadoras de uma relação simbiôntica entre tecnologia, produção e trabalho. A distribuição setorial da população economicamente ativa nos países centrais e semiperiféricos manifesta-se, em meio a outros efeitos, como reflexo dessa simbiose entre os elementos aludidos.

Os incrementos tecnológicos da economia moderna caracterizam novas formas de produção onde se implementam máquinas e robôs no processo produtivo, tanto no setor primário, que cuida da produção de matérias-primas, quanto no setor secundário, que cuida da produção industrial.

A mecanização das lavouras e criadouros responde pela liberação de um enorme contingente ocupado no setor primário. Substituída por tratores, máquinas de ordenha entre outros equipamentos, a mão-de-obra perde seus postos de trabalho sendo obrigada a buscar ocupação na indústria ou no setor terciário, que cuida do comércio e dos serviços em geral.

No entanto, o setor secundário também vivencia um processo de liberação de mão-de-obra associado à automação das atividades produtivas, com a introdução de robôs de alta precisão nas linhas de montagem. A indústria, que empregava um grande volume de trabalhadores portadores de baixa qualificação, agora demanda poucos operários e exige maior qualificação para a manipulação dessas máquinas complexas.

Aos trabalhadores que perdem seus postos de trabalho, no campo e na indústria, resta o setor terciário como alternativa de sobrevivência. E é nesse contexto que se manifesta o processo de terciarização da economia. As economias consideradas periféricas não participam ainda desse processo pois a maioria de sua população economicamente ativa (PEA) está ocupada no setor primário. Falo aqui de países como as “Repúblicas das Bananas”, na América Central, e países africanos em geral, exceto a África do Sul. Todavia as economias semiperiféricas e centrais estão totalmente inseridas nesse processo de terciarização, pois já experimentaram ou continuam a experimentar o processo de transferência setorial da PEA.

Estados Unidos, Canadá, Austrália, Grã-Bretanha, França, Bélgica e economias semelhantes formam um conjunto de países centrais onde o setor terciário já emprega mais de 70% da PEA. Alemanha e Japão, que ainda guardam mais empregos na indústria, já possuem mais de 60% da PEA no terciário. Estes espaços configuram “Economias pós-industriais”. E mesmo com essa alta concentração o nível de desemprego não é muito alto, embora haja desempregados, elemento essencial para a sobrevivência do capitalismo.

Isso se justifica pelo fato de a população possuir maior poder aquisitivo, o que alimenta a multiplicação dos serviços nesses países. As bolsas de valores, engenharia genética, laboratórios de pesquisas, empregam muitas pessoas. Serviços extremamente supérfluos geram renda para muita gente. Explico. Uma das novas manias do Central Park, em Nova Iorque, é a prática de Yoga para cães. Alguém ganha dinheiro dando aulas de Yoga para Cães! Investigando o assunto descobri que psicólogos (?) fazem terapia em animais... Esses são serviços que não encontram espaço nos mercados dos países semiperiféricos.

Brasil, Argentina, México, África do Sul e outras economias similares formam um conjunto de países onde mais de 50% da mão-de-obra está ocupada no setor terciário. No entanto, o poder aquisitivo bem mais restrito nesses países, gera uma demanda menor por serviços fazendo com que haja menor oferta de empregos neste setor, que se apresenta, portanto, hipertrofiado. Com o setor terciário formal inchado, resta a opção da informalidade para a produção da subsistência da população.

Em 1979, o geógrafo brasileiro Milton Santos, tido por muitos como “Filósofo da Geografia” pela profundidade das suas idéias, lança o livro “O Espaço Dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos”. Esta obra, rapidamente, se tornou um clássico da geografia mundial. Nela, Milton apresenta uma análise onde a engrenagem da economia urbana dos países subdesenvolvidos caracteriza-se por ser dotada de um circuito superior, de caráter formal, e um circuito inferior, de caráter informal, que reflete esse quadro de hipertrofia do terciário.

É notável a expansão do setor terciário informal, esse circuito inferior da economia urbana, nos países semiperiféricos. O Brasil serve como exemplo clássico desse processo. As grandes metrópoles, superlotadas, concentram um enorme contingente de mão-de-obra disponível e o excesso engrossa as fileiras de ambulantes e biscateiros de todos os tipos.

Cada um faz o que sabe ou o que pode fazer. Quem tem conhecimentos de mecânica, conserta carros. Quem tem habilidades com manutenção, trabalha em obras, mexe com hidráulica, eletricidade, gás... Quem não sabe fazer esses serviços, vende o que aparecer pela frente. Água, cerveja, biscoito, pipoca, chocolates, balas. Vi, certa vez, um sujeito vender Novalgina no trem, em meio a dezenas de produtos. Multiplicam-se os camelôs nas ruas e nos meios de transporte. Manifestações artísticas nos sinais, desde os meninos equilibrando limões até os mais elaborados manuseios de malabares em chamas, também entram como modo informal de obtenção de renda.

Minha reflexão final é inspirada em Milton, que em sua obra “Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal”, entre outras abordagens, escancara “o mundo como é: a globalização como perversidade”.

“(...) O desemprego crescente torna-se crônico. A pobreza aumenta e as classes médias perdem em qualidade de vida. O salário médio tende a baixar. A fome e o desabrigo se generalizam em todos os continentes. Novas enfermidades como a SIDA se instalam e velhas doenças, supostamente extirpadas, fazem seu retorno triunfal. A mortalidade infantil permanece, a despeito dos progressos médicos e da informação. A educação de qualidade é cada vez mais inacessível. Alastram-se e aprofundam-se males espirituais e morais, como os egoísmos, os cinismos, a corrupção.
A perversidade sistêmica que está na raiz dessa evolução negativa da humanidade tem relação com a adesão desenfreada aos comportamentos competitivos que atualmente caracterizam as ações hegemônicas. Todas essas mazelas são direta ou indiretamente imputáveis ao presente processo de globalização“.

Um abraço solidário!


Referências: Santos, Milton; Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro. Record. 2001.

sexta-feira, maio 25, 2007

BRASIL PRIVATIZADO

Fato marcante na década de 1990, o processo de privatização de empresas estatais brasileiras impõe-se como materialização do projeto neoliberal que se contrapõe à interferência do Estado na economia mediante políticas sociais de natureza assistencialista. Associada a redução das barreiras comerciais protecionistas e a instituição de acordos delimitadores de mercados multilaterais regionalizados, essa política corrobora o anseio do mercado de que o Estado só deve intervir diretamente na economia em conjunturas onde se manifestem rupturas do equilíbrio econômico. A interferência estatal continuada seria prejudicial ao desenvolvimento. Preconiza-se o Estado Mínimo.

Sustentando-se sobre a égide da ineficácia administrativa do Estado, os neoliberais pretendem a decomposição acionária das grandes companhias estatais nutrindo o desejo de auferir lucros incomensuráveis, a médio e longo prazos, a partir da aquisição desses ativos. Dentre as razões eleitas para sustentáculo do discurso da inconveniência do Estado-gerente aparecem argumentos como a estabilidade do funcionalismo público, possível causadora de acomodação e improdutividade, o que conduziria à falta de competitividade e aos prejuízos financeiros típicos nessas corporações. No entanto esse discurso nos guia à discussão da flexibilização das leis trabalhistas, temática que vem sendo abordada de forma subliminar pelos meios de comunicação, com intuito de promover uma sensível redução de custos de folha de pagamento e eliminar a estabilidade profissional, o que visa a inserção de mais um elemento concorrencial na esfera produtiva.

Na história econômica recente do Brasil, a estabilidade monetária forjada em bases artificiais através do Plano Real, em meados da década de 1990, responde pela privatização de diversas companhias estatais. As reservas cambiais, que servem para evitar desequilíbrios bruscos no valor da moeda, foram consumidas em profusão durante os governos de FHC, no intuito de manter uma relativa paridade entre o Real e a moeda norte-americana.

A cada crise financeira internacional, o dinheiro, que não tem território demarcado no mundo globalizado onde o próprio espaço é dotado de nítida esquizofrenia, migra em busca das áreas consideradas como mais seguras para sua reprodução, ainda que com menores ganhos. Já as áreas dotadas de estruturas macroeconômicas mais frágeis experimentam vigorosa evasão de divisas, tornando impossível a manutenção de uma paridade monetária sustentável sem uma aguda intervenção governamental, que deve dispor de seus recursos para elevar a oferta de capital no mercado, a fim de reter a turbulenta flutuação cambial.

- E se não houver capital suficiente?
- Peça emprestado a algum banco.

- E se o contexto for de crise? Se ninguém quiser emprestar?
- Venda suas empresas!

A política de privatização se transformou numa recomendação expressa de organismos financeiros internacionais como o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, que condicionam a obtenção de novos empréstimos neles obtidos ao seguimento fiel dessas orientações.

E assim foi feito no Brasil, país que até então era dotado de penosa fragilidade macroeconômica. Em 1993, no contexto da crise do México, ainda antes do Plano Real, foi privatizada a Companhia Siderúrgica Nacional. Em 1997, ano da crise dos Tigres Asiáticos, foi a vez da Vale do Rio Doce, vendida numa transação onde o BNDES emprestou o capital para o Consórcio Brasil, que arrematou a gigante da mineração por pouco mais de R$ 3 bilhões. Muito pouco. Quase nada. Em 1998, ano da crise na Rússia, o sistema Telebrás foi privatizado, arrecadando R$ 22 bilhões. E em 2002, ano da crise na Argentina, a Petrobras, teve boa parte de suas ações vendidas.

- E o dinheiro?
- Serviu pra manter o valor do Real. Só isso.

O cenário macroeconômico contemporâneo aponta na direção contrária a dos últimos anos caminhando para atingir o nível mais alto de segurança para investimentos. Não é de hoje que os fundamentos da economia brasileira dão sinais de força. No ano passado, um golpe militar na Tailândia detonou uma fuga de capitais especulativos de diversas regiões do mundo periférico e o Brasil não foi sequer incomodado por esse processo. Se tal golpe tivesse ocorrido dez anos antes, provavelmente teríamos sofrido rápida perda desses capitais voláteis com conseqüente desencadeamento de crise financeira. Hoje, uma enxurrada de dólares fortalece o Real, naturalmente.

Também não é de hoje que defendo a política econômica planejada pelo ex-ministro Antonio Palocci, como você pode ler aqui. Mas minhas críticas ao governo Lula pesam sobre a elevadíssima carga tributária que dificulta os investimentos e limita a competitividade de nossas indústrias.

O governo eliminou a política de incentivos fiscais federais e hoje combate a guerra fiscal entre estados e municípios, mas o peso dos impostos vem fazendo com que as empresas aqui instaladas percam mercado. Para exemplificar a questão, atualmente o aço brasileiro está perdendo espaço para a produção de outras áreas. A montadora Fiat, de Betim, em Minas Gerais, já está encomendando peças de aço da Coréia do Sul, que estão chegando ao Brasil 15% mais baratas que as mesmas peças produzidas nas siderúrgicas de Minas, mesmo com frete incluso.

Tendo em vista esta grave ameaça, o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), se deseja obter êxito, precisa coordenar as metas de crescimento com a redução gradual da carga tributária, para que com ganho de competitividade as indústrias possam expandir seus mercados, estimulando a produção e a geração de empregos e renda, o que, certamente, estimulará a ampliação do consumo no mercado interno.

Um abraço solidário!

terça-feira, maio 08, 2007

DESUMANIDADE NA MEDICINA

Estou publicando novamente esse texto, com alterações feitas por minha irmã. Em verdade, a matriz que deu origem a esse texto foi escrita com raiva e no calor das emoções. Analisando com mais calma a situação, retorno ao Geografias Suburbanas e substituo o texto antigo por um novo, escrito por mim e por minha irmã, os dois filhos da dona Maria Luiza. A essência é a mesma. Muda um pouquinho o formato.

Agradeço desde já a solidariedade de todos que já compareceram aqui deixando-nos uma mensagem de conforto. Grande abraço!

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O exercício da medicina é, sem dúvida, uma dos mais belos e valorosos ofícios do homem. Sem querer desmerecer quaisquer outras profissões, o ato de salvar vidas, de cuidar da saúde das pessoas é algo ímpar, digno de muito respeito. O profissional de medicina se depara diariamente com situações de vida e morte, com dor, com riscos, além de outros fatores mais amplos, partindo do pressuposto de que a saúde vai além do bem-estar físico.

Justamente por isso, esse profissional tem uma das formações mais complexas e extensas do universo acadêmico e, além da formação, precisa, sobretudo, de ter enorme senso de responsabilidade, respeito e sentimento de humanidade. A meu ver, o respeito, na concepção mais profunda da palavra, pelo paciente, deve ser o principal elemento norteador do trabalho do médico.

Trago, hoje, um desabafo sobre mais um exemplo de descaso e de desrespeito com um paciente atendido pela rede pública de saúde no Brasil. Com tristeza, digo que se passou com um elemento da minha família: minha mãe.

Faz uns seis meses que minha mãe apareceu com um problema no dedo médio da mão direita. Foi diagnosticado o já comum "dedo-gatilho". Ela consegue fechar a mão, mas, ao abri-la, o dedo médio fica "preso", o que causa dor e desconforto, que aumenta com o tempo. Como minha mãe não tem plano de saúde, recorremos aos postos de atendimento mais próximos ao Parque Proletário Engenho da Rainha, localidade onde mora.

O ortopedista de plantão do PAN Del Castilho disse que o "dedo-gatilho" se resolve com uma cirurgia relativamente simples e rápida, que menos de uma hora seria suficiente para resolver o problema. Perguntamos se ele poderia fazer a cirurgia e ele respondeu que não, que somente um hospital "de grande porte" poderia atende-la. Mas, com um "ar de canalha", o profissional disse que, pela quantia de mil reais, faria a cirurgia fora do PAN. Levantamos e fomos embora.

Conseguimos marcar consulta no Hospital Geral de Bonsucesso, o HGB. Minha mãe foi atendida na Ortopedia e o médico marcou, em curto prazo, os exames pré-operatórios. Saímos animados. Tudo parecia caminhar rápido, mas nossa animação foi em vão. No dia dos exames pré-operatórios, minha mãe aguardou, em jejum, das oito da manhã, horário que o médico pediu que ela chegasse, ao meio-dia, horário em que, já impaciente e com fome, resolveu procurar o médico. Ela o encontrou andando pelo pátio e perguntou se ele faria os exames. Ele pediu que ela aguardasse mais um pouco e disse que ela já seria atendida. Não foi. O médico "sumiu". Quando voltou, lá pelas duas e meia da tarde, disse que faria os exames dali a dois ou três dias. E ficou por isso mesmo. Esse foi apenas o primeiro ato de desumanidade desse profissional que, em nossa modesta opinião, não merece o título que tem.

Numa outra data, com muito custo e horas de espera, os exames foram realizados e a cirurgia marcada. Começa um novo drama. Faz umas três semanas, minha mãe foi ao HGB na data marcada para a "simples" operação. Mesma rotina: chegar oito horas da manhã em jejum e... longa espera! Por volta das seis e meia da noite, já cansada, pálida, como os pés visivelmente inchados por ficar sentada num banco de corredor de hospital por mais de dez horas, e, obviamente, com muita fome, minha mãe vê um médico passar pelo corredor da ortopedia. Era o Dr. Cláudio, atualmente o chefe do setor. Faça um bem para uma mãe e ela te agradecerá, faça pelo filho dela, e ela nunca mais esquecerá. Ela reconheceu Dr. Claudio, pois havia sido ele o médico que me atendeu há 17 anos atrás, quando eu sofri uma fratura de grau 3 na perna e no pé direito. Sofri fraturas na tíbia e no perônio e meu pé quase foi "arrancado fora". O atendimento, que aconteceu no mesmo HGB, foi perfeito.

Minha mãe falou ao Dr. Cláudio da sua situação de longa espera e, só então, ela soube que o médico que a operaria já havia partido e que, portanto, não operaria mais ninguém. Isso mesmo: o médico havia ido embora sem avisar. Não deixou sequer um recado com a secretária do setor. Dr. Cláudio, esse sim um profissional comprometido com o exercício da sua função, dentro de suas condições, se prontificou a fazer a cirurgia, mas não poderia ser naquele dia, pois o Centro Cirúrgico estava lotado por conta de um grave acidente, cujos feridos haviam sido levados para o HGB.

Como havia necessidade de um acompanhante, minha irmã havia pedido liberação na empresa privada aonde trabalha para acompanhá-la. Não só minha mãe, como uma outra paciente também deixou de ser operada. Ela, que também aguardava para operar o pulso esquerdo, morava em outro município, havia saído de casa às quatro horas da manhã e estava há mais de onze horas em jejum completo, além de ter perdido o dia de trabalho. Minha irmã estava revoltada, mas minha mãe ainda disse, resignada, que outras pessoas estavam sendo atendidas de emergência, que o caso dela podia esperar.

Quarta-feira passada, minha mãe voltou ao HGB com um formulário para triagem de pacientes do Instituto Nacional de Traumato-Ortopedia – INTO que minha irmã havia conseguido imprimir da página do Instituto na Internet. Minha mãe procurou o tal médico e pediu a ele para preencher o formulário, para que ela pudesse começar de novo seu árduo trabalho em busca de atendimento, porém não mais no HGB. O médico se desculpou pelo ocorrido, disse que não seria necessário, que o processo no INTO demoraria muito, e que ele mesmo faria, com toda a certeza, a cirurgia, na semana seguinte, no dia 08 de maio de 2007.

Pois bem. Naquele dia, minha mãe estava lá na hora e local marcados. Pasmem: ele não foi trabalhar. Não deu um telefonema pra mandar os pacientes pra casa, avisar que não poderia comparecer. Às duas da tarde, quando um médico do setor apareceu, minha mãe rapidamente o interrogou pelo cirurgião e então soube que ele não iria ao HGB naquele dia. Inconformada, minha mãe tentou convencê-las a conseguir um espaço na agenda de cirurgia daquele dia, mas às três e meia da tarde, cansada, faminta e triste, deixou o hospital convicta de que esse descaso com o ser humano não combina com o exercício da medicina.

Como brasileiros, sabemos da limitação do serviço público de saúde, especialmente quando se trata de um hospital federal de referência, com amplo atendimento de emergência e localizado numa das principais vias de escoamento do Rio de Janeiro, a Avenida Brasil. A toda hora chegam quebrados, rachados, pisados, moídos, baleados, que lotam os centros cirúrgicos e que tem prioridade de atendimento. Não é daí que vem nossa indignação. Ela vem da desumanidade revelada no fato do tal médico (médico?) não se prestar a dar um telefonema pra desmarcar o combinado com seus pacientes; deixar as pessoas esperando por horas em jejum até caírem de fome num corredor de hospital, demonstrando um total desrespeito não só com o paciente que o aguarda para uma cura, mas para com um ser humano que precisa de atenção e cuidado. Não estaríamos lá se não precisássemos. Existem poucas vagas no setor de ortopedia? Existem prioridades de atendimento? E a dor que se intensifica e que acomete minha mãe todos os dias? É pouca, mas não tem vez de ser resolvida?

Detestamos viver num país onde algumas pessoas têm privilégios por conhecerem outras mais influentes. Num dos países mais corruptos do mundo, é preciso repensar nossas atitudes em todos os graus. Nossa história pessoal é ligada à saúde pública desde nossos avós e pais, funcionários da Fundação Oswaldo Cruz. Minha irmã desde 1998 trabalha em instituições da área de saúde, dentre elas a Fiocruz, o Inca, o próprio HGB e a Agência Nacional de Saúde Suplementar. Poderíamos ter tentado contatos. Alguns telefonemas poderiam ter resolvido essa questão de modo mais "fácil". Sabemos que isso é um fato, que algumas instituições possuem, em seus quadros funcionais, pessoas que permitem que esse tipo de privilégio aconteça. Não queremos privilégios, queremos apenas ser atendidos, pois isso é um direito que temos, garantido pela Constituição. Fomos buscar o acesso como todo e qualquer usuário do Sistema Único de Saúde e nos defrontamos com os velhos e conhecidos problemas do nosso país.

Não podemos responsabilizar uma ou duas pessoas por essa situação ou mesmo um governo. Mas precisamos fazer com que as pessoas tenham conhecimento dessas situações, para evitar que elas se repitam com outras. Esse profissional médico que fez o que fez com minha mãe é um residente do HGB. Ele pode continuar fazendo essas mesmas coisas com outras pessoas? Não podemos compactuar com esse tipo de postura.

Minha mãe, ao chegar em casa, me disse, com a sabedoria que lhe é peculiar:

- Talvez, meu filho, eu tenha que agradecer por isso estar acontecendo comigo.

Eu, sem entender, respondi, com uma pergunta, meio atônito:

- Como assim, mãe?

- Hoje, morreu no HGB, uma jovem de 37 anos com infecção hospitalar generalizada contraída, segundo a família, no Centro Cirúrgico. Talvez tenha sido melhor eu não conseguir uma vaga lá...