sexta-feira, julho 04, 2008

UM CAFÉ PARA MARIA FAGUNDES

- Bahia é bom, né fio?
- É, Vó.
- Mas ela lá e ocê cá!

Era exatamente este diálogo que se repetia todas as vezes que Vovó Maria Fagundes clareava a terra com sua presença entre nós deste mundo. Como se fosse uma senha pessoal e intransferível que permitia aos seus netos reconhecê-la em sua chegada, por trás daquele homem que humilde e caridosamente servia-lhe de veículo.

Passava horas contando as histórias do seu Véio Mané, o companheiro que deu a ela dezenove filhos quando esteve nesse mundo. E além do pito, servido no cachimbo, pedia invariavelmente a sua canelinha – um licor de canela – para acompanhar a prosa em que dava conselhos aos seus netos.

E que sabedoria tinha aquela nega-velha! Desde as primeiras consultas ela me disse coisas que eu jamais fui capaz de entender por completo e outras que eu só compreendi depois de muitos anos. Coisas que são aparentemente, apenas aparentemente, muito simples, como a resposta que ela dá para a pergunta que marca a sua chegada. Porque “mas ela lá e ocê cá” pode ter significados muito complexos.

Com o tempo e o desgaste da saúde física do seu “cavalo”, vovó foi deixando de lado a canelinha e passou a pedir a “moca, sem terra”. Levou certo tempo para descobrir que o que ela pedia era um café sem açúcar. Dessa charada, a “terra” foi fácil de entender, mas o difícil foi a “moca”. Nunca compreendi porque a velha chamava o café assim e só agora começo a ter algumas suspeitas.

Segundo a lenda mais difundida sobre a origem do consumo do café, Kaldi, um pastor de cabras da região de Kafa na Etiópia, descobriu o efeito estimulante da fruta observando que seu rebanho ficava mais ágil, lépido e resistente às subidas íngremes quando pastava em áreas onde se alimentava com o café. A notícia se espalhou pela região e em pouco tempo o consumo se multiplicou.

No entanto, quase um milênio se passou desde a descoberta do pastor até que o café adquirisse a forma de consumo atual. Antes era consumido na forma macerada, misturado com banha para as refeições ou ainda na forma de um suco que, fermentado, virava bebida alcoólica. Embora o café fosse utilizado pelos etíopes, foram os árabes do Iêmen, do outro lado do mar Vermelho, que dominaram o cultivo da planta e monopolizaram seu comércio. No século XIV eles já utilizavam a técnica de cultivo em terraços irrigados.

Nessa mesma época, a expansão mercantilista inseriu o café no conjunto de especiarias de alta rentabilidade por conta do interesse despertado pelo caráter estimulante e misterioso da bebida no mercado europeu. Enquanto isso, no Iêmen, a produção aumentava significativamente. E foi na região de Mocka (al-Mucka), o principal porto do país, que a produção atingiu seu esplendor, sendo este o maior porto exportador daquele tempo.

Foram as sementes de Mocka que os holandeses levaram para seu Jardim Botânico em Amsterdã e de lá as espalharam por suas colônias. Foi também com essas sementes que eles presentearam Luis XIV e a partir delas a França passou a cultivá-las em Martinica. Da ilha caribenha, as sementes chegaram à Guiana Francesa, de onde viriam para o Brasil, trazidos por Francisco de Melo Palheta.

Não bastassem as coincidências entre a “moca” da Vovó Maria Fagundes e a Mocka, cidade que deu origem à expansão do cultivo do café pelo mundo, há ainda outra fonte de coincidências, desta vez no espaço da cidade do Rio de Janeiro. Sabe-se que boa parte da área da floresta da Tijuca foi desmatada no passado dando lugar a cultivos de café. E um dos primeiros introdutores das plantações na área foi um belga de sobrenome Moke.

José de Alencar, em sua obra “Sonhos d´ouro”, falando das belezas da floresta, cita a chácara do belga neste trecho:

Entre estas notam-se principalmente duas, a do Moke, por ser das residências mais antigas que se estabeleceram nesse aprazível sítio; e a do Dr. Cochrane, arranjada à feição de um modesto parque inglês, o que lhe atraía outrora grande número de visitantes”.

Como se vê, não é por falta de razões que a nega-velha chamava o café de moca. Mas o que espanta os mais céticos é que meu velho avô, cavalo de Maria Fagundes, não era exatamente um homem das letras, daqueles repletos de conhecimentos acadêmicos. Não. O velho, que aprendeu a assinar o próprio nome aos quarenta e seis anos de idade e só depois aprendeu a ler e a escrever corretamente, tinha a cultura do mato. Era mestre, mas do saber informal.

Prova de que sua espiritualidade imensa permitia àqueles que o utilizavam como veículo expressar suas mensagens e manifestar seus hábitos e costumes de forma clara, transparente. Quem tem demanda não dorme e eu jamais me esquecerei de Vovó Maria Fagundes, de suas histórias, seus hábitos e do seu canto cotidiano:

Pai Joaquim, cadê pai Mané?
Tá na roça colhendo café.
Diz a ele, quando vier
Pra subir na escada sem bater com o pé!

É ouro, minhas almas!

6 comentários:

Larissa disse...

Mais um excelente texto, como sempre. Quando você está inspirado, ninguém te segura. Beijos

Diego Moreira disse...

Estou guardando para o livro, garota.
Beijo.

Anônimo disse...

Eita texto bom de ler...

Lina Campos disse...

esse texto me lembrou de um diálogo q tive:
"- Fia tem palavra bonita. Fia tem que falar, nao pode guardar. Fia as vezes não fica com falta de ar?
é de guardar palavra.
- Mas e quando já passou o tempo de falar?
- Fia não ouve coisa que não é tempo de ouvir? Vivemos pra isso: escutar e falar."

Mesmo assim eu sempre fico muda... Tem sabedorias que só com o tempo entendemos. E qto mais entendo de mais silencio preciso...Vim ao mundo mais para ouvir que para falar...

lindo texto!

Thiago Braga disse...

É dose de café para o espírito! Belo texto!

Diego Moreira disse...

Obrigado, queridos!
Axé!