quinta-feira, abril 23, 2009

COTIDIANAS SUBURBANAS

Já escrevi várias vezes aqui sobre hábitos, costumes e tradições dos suburbanos. Antes de apresentar mais alguns desses costumes, quero esclarecer que não cabe aqui nenhuma sombra de bairrismo, regionalismo ou coisa que o valha. Os suburbanos são pessoas de diversas origens. Agregam tradições vindas dos recantos mais isolados desse país e do mundo.

O Subúrbio tem brasileiros com antepassados nativos, com antepassados que aqui chegaram há muito, e são frutos da saborosa mistura que forjou esse povo. Mas tem também aqueles cujos antepassados chegaram há pouco e ainda os que não tem antepassados nessa terra.

O Subúrbio tem católicos, crentes, esotéricos, judeus, juremeiros, macumbeiros de todos os batuques, muçulmanos, rezadeiras, wiccas e o escambau. Cabe todo mundo. E, por isso, ele é uma bela síntese da diversidade que forma o povo brasileiro. Dito o necessário, vamos em frente.

Poucas coisas são mais bonitas do que a confiança que as pessoas tem nas outras. O convívio, a amizade e a vizinhaça são capazes de produzir essa confiança com a ajuda do tempo. E é um caso de amizade, vizinhança, convívio e confiança que eu quero contar.

Nessa véspera do dia de São Jorge, padroeiro do Brasil no coração do povo, mamãe saiu de casa para comprar palmas vermelhas e levar para o Templo de Iemanjá, que faria uma festa para Ogum no dia 23. Levava pouco dinheiro, apenas treze pratas preenchiam a sua carteira.

Ao chegar na barraca de flores, que estava lotada de fiéis do Cavaleiro de Aruanda, mamãe encontrou uma obra prima da natureza. Era a Crista de Galo, flor tradicionalmente usada pelos fiéis para presentear o algoz do dragão. Estavam belíssimas. Mamãe juntou as Palmas, a Crista de Galo e fez as contas. Tudo sairia por vinte pratas. Seu dinheiro não dava.


Ela atravessou a rua e foi falar com o Jorge, vendedor de legumes que trabalha por ali há muito tempo. Mamãe, morando há 26 anos no mesmo lugar, só não é conhecida pelos mais novos, como o florista. O mesmo vale para meu pai, minha irmã e para mim. Mamãe não teve dúvida:

- Ô Jorge, me empresta dez reais aí, pra eu comprar umas flores ali no cara? Depois eu te pago.

O Jorge só respondeu

- Pode levar. Não tem pressa, não.

O relógio marcava mais ou menos onze da manhã. Mamãe comprou as flores, foi pra casa, fez almoço, almoçou, lavou louça, viu novela, dormiu durante e depois da novela e, só depois, foi devolver o dinheiro do Jorge. E o que ele disse?

- Ô, mulher! Não falei que não tinha pressa? Podia trazer isso pra semana...

Mamãe respondeu:

- Ah, não, Jorge. Minha cabeça tá muito ruim. Depois eu esqueço e você fica sem o dinheiro.

Os dois riram.

Pra muitos, esse gesto - pedir dinheiro emprestadoao verdureiro - é absolutamente bizarro. Para o Jorge, que me viu de fraldas com dois meses de idade, não emprestar é que seria bizarro. Especialmente porque sempre mantivemos essa relação de amizade.

O que me encanta nessa crônica cotidiana de véspera de feriado é essa relação de camaradagem, de amizade, de proximidade, de confiança. Esse é o meu lugar, onde eu aprendo com minha mais velha a beber dessa forma de vida. Esse é o meu subúrbio, é o meu esteio.

6 comentários:

Unknown disse...

Tão simples e tão profundo. É esta a essência do Brasil que a elite não entende e NUNCA entenderá. Grande abraço!

Diego Moreira disse...

É isso, Bruno! Você captou perfeitamente a essência do troço.

Com você diz, putabraço!

Clélia Riquino disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Clélia Riquino disse...

"Poucas coisas são mais bonitas do que a confiança que as pessoas tem nas outras. O convívio, a amizade e a vizinhança são capazes de produzir essa confiança com a ajuda do tempo."
E, às vezes, meu caro, nem isso... Vindos do Grande ABC pra Valinhos, há pouco tempo, fomos comprar verduras frescas num quitandeiro próximo de casa, que, depois deste episódio, apelidamos, carinhosamente, de "o velho da horta" (pois ele colhia verduras e legumes, direto da horta, conforme o pedido do freguês). Era nossa primeira incursão por lá. Na hora de pagar a compra, eis nossa surpresa: não tínhamos levado a carteira. O bom e confiante velho, percebendo o impasse, logo falou: _ Podem levar, depois vocês acertam! E foi o que fizemos, e, como sua mãe, logo retornamos, pra que o esquecimento não lhe causasse nenhum prejuízo. Naquele dia, descobrimos que Valinhos era um bom lugar pra se viver! (e outros pequenos episódios confirmaram isso)

Beijo,
Clélia

cisco disse...

Show de bola... Lá em New Port...rs(São Gonça) a vida também rola assim numa boa...

Abçs !

Diego Moreira disse...

Clélia, é isso. Acho que os mais velhos, como minha mãe, o verdureiro e tal, ainda trazem no peito essas tradições muito comuns em zonas rurais desse país, ainda hoje. A garotada é que anda meio desligada dessas coisa bonitas. Isso é bonito demais. Beijo!

Cisco, valeu cara. Abraços!