sábado, abril 18, 2009

SOBRE MUROS, CAVEIRÕES E REMOÇÕES

Os estudos mais básicos de geografia urbana são suficientes para compreender como se constrói o espaço interno das cidades. Para saber quem de fato manda no processo, quem determina e orienta como, quando e para onde as metrópoles devem crescer.

Os agentes sociais que conduzem a produção do espaço urbano são o grande capital - representado pelos donos dos meios de produção, pelos proprietários de terras nas cidades e pelas grandes construtoras - e o Estado - que raramente age de forma neutra em seu papel de regulação do uso do espaço e de provedor de infraestrutura, quase sempre favorecendo a reprodução do grande capital. Ou seja, é aos grupos socialmente mais representativos que pertence a primazia de orientar a produção do espaço das cidades em geral, cabendo ao povo apenas o papel segui-los enquanto massa, excluídos do poder de decisão.

A política urbana da cidade do Rio de Janeiro, desde o final do século XIX, foi baseada no "higienismo" que, em seu aspecto social, determinou o desmonte de cortiços, a demolição de morros e a consequente expulsão de seus habitantes - pobres, operários e excluídos - para as áreas de menor interesse para o capital imobiliário. Condição sine qua non para a valorização das áreas nobres cobiçadas pelos especuladores. Inicia-se a favelização da cidade, como reflexo da tentativa do operário de manter-se próximo ao local de trabalho.

Multiplicam-se, então, as favelas - cidades informais dentro da cidade formal. Ambiente propício à proliferação de todas as formas de ilegalidade. Fazer o que? Há luz? Água? Esgoto? Educação? Saúde? Não! Para as coisas de casa, com a esperteza que só tem quem está cansado de apanhar, encontra-se um jeito. Mas sem escola ninguém aprende. E sem saúde o povo morre. Preso na miséria da favela. Mas nem tão livre do açoite na senzala, como achou o poeta. A senzala de hoje é o trem na estação de Madureira.

O problema que descortina-se diante do regulador do espaço impõe uma tomada de posição, uma escolha: ou o Estado formaliza o espaço ilegal ou luta contra ele. Do higienismo aos dias atuais ficou claro que o regulador do espaço optou pela repressão. O Favela-Bairro acabou funcionando como uma forma de combate à informalidade travestida de ação inclusiva. Lobo Mau com cara de Vovozinha. A microfísica do poder determinou que se deve vigiar e punir os pobres, os condenados da cidade.

Então o Estado equipa-se com aparatos de repressão à ilegalidade ao som dos aplausos do grande capital. Mas na favela, os estalos são outros. Foguetes e morteiros anunciam o início de mais uma batalha dessa guerra farta em esquizofrenia. Pois as redes ilegais da violência nos morros alimentam-se da corrupção dos bonecos do Estado, as marionetes mal pagas do jogo da guerra.

A classe média, que se submete a empenhar durante décadas grande parte do seu dinheiro ganho com o suor da lida do dia-a-dia, pra ter o direito de viver - e morrer - num caixote, cercada de grades e vigiada noite e dia, é tão vítima quanto os que nem isso puderam prover para si. É ela que engorda as fortunas do grande capital. Mas, de tão estúpida e reacionária, não se dá conta disso. E exige do Estado a barbárie. A mais violenta forma de repressão. Caveira, meu capitão! Caveira!

Publicado na Folha de São Paulo, em 14/04/2009.

Agora o Estado vestiu, por cima da farda preta, a camisa verde da mata atlântica pra defender a construção de muros que estabeleçam "ecolimites" à expansão das favelas na cidade. Uma ideia incoerente. A classe média, estúpida e reacionária, quer mais. Exige a remoção das que já existem.

A incoerência é simples e proposital. Se fosse pra ser coerente, o Estado também deveria construir muros, fazer remoções e estabelecer ecolimites nos manguezais da Barra da Tijuca. Mas aí o patrão não deixa. Fica bravo. E o Estado corre o risco de ser demitido. Sem justa causa.

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Meu agradecimento à Clélia Riquino, que enviou-me a charge de Angeli por email.

17 comentários:

Filipe disse...

É isso aí, meu amigo! Arrebentou na análise, como sempre!

Estou espantado com o teor reacionário da reação das pessoas! No último domingo, 3500 pessoas responderam a uma enquete de O Globo sobre a necessidade de remoção das favelas! 95% foram a favor!

As medidas propostas pelo prefeito e pelo governador parecem mais ter caráter publicitário que efetivo. Será que uma pessoa inteligente não sabe que todo muro tem dois lados e que se eu posso construir uma casa de um lado do muro, eu posso construir do outro também? Há até quem argumente que a paisagem da cidade é prejudicada pelas favelas. Ora, também não atrapalham a vista os imensos edifícios luxuosos nas avenidas à beira- mar? São medidas que antes de resolver o problema, escondem-no, num mecanismo perverso de sabotagem da coisa pública, que caracteriza governos elitistas, pirotécnicos e despreparados.

Tomemos cuidado com os factoides. Num momento de crise, o que se espera é alguma medida que, aplicada, apazigue nosso espírito diante do caos. Essa ânsia, no entanto, não pode nos tornar míopes diante de projetos inconsistentes. O que o governo do Rio de janeiro vai conseguir com essas medidas é aumentar a segregação, cada vez mais latente na nossa cidade, tornando os oprimidos mais oprimidos. Não se trata, portanto, de defender bandidos, mas de termos a noção de que não é só de pessoas coniventes com o crime que se constrói uma comunidade carente.

Diego Moreira disse...

Subscrevo-me ao seu comentário, meu camarada!

Abraço!

Fernando Molica disse...

É, no desespero, as pessoas tendem a procurar a saída mais simples, a velha lógica fascista de encontrar um ínimigo evidente: e aí vale matar judeus, fechar o Congresso, remover favelas. Não há solução simples e isolada: as favelas não nasceram do nada. Os que falam em remoção se esquecem que isso inclui não apenas derrubar barracos, mas de se mover vidas, relações, expectativas. A Cidade de Deus é um exemplo de desastre causado por políticas públicas equivocadas. Aqui no Rio, todo mundo errou. Chegamos a um ponto muito delicado, bandos armados de diferentes origens domimam pedaços do território, não sei se isso existe em outro lugar do mundo fora de um contexto de guerrilha e de secessão. A situação é complexa demais para se resolver com golpe de mágica. Mas é preciso discutir o assunto, está em jogo o futuro dessa cidade. É só prestarmos atenção na decadência dos subúrbios, muitos ficaram vazios, fábricas e empresas foram embora, o que só aumenta o desemprego e a pobreza.

Abração.

Molica

Diego Moreira disse...

Maravilha, querido.

E é assim, discutindo amplamente o assunto, que contribueremos para o avanço da democracia brasileira e para o esquecimento das ideologias reacionárias, fascistas e totalitárias que contaminam a nossa sociedade atualmente.

Abração!

Clélia Riquino disse...

A contribuição, desta vez, não foi musical...

beijo,
Clélia

Arnaldo Heredia Gomes disse...

Diego,

Esse muro me lembra o projeto Cingapura que o Maluf criou, aqui em São Paulo, construindo pequenos prédios de apartamentos para esconder, de quem trafegava pelas grandes avenidas, as favelas da cidade.

Diego Moreira disse...

Clélia, mais uma vez, obrigado!

Arnaldo, a ideia do Maluf é tão escrota quanto a dos muros, com certeza.

Abraços aos dois!

Luiz Antonio Simas disse...

Desde já um texto de referência!

...um cisco... disse...

Mestres em tapar o sol com a peneira, o homem inventa: A peneira de cimento !MAIS UM PROJETO DAS ORGANIZAÇÕES TABAJARA PLANETA TERRAMais uma Berlim, Faixa de Gaza, etc. Será que teremos que recomeçar dos escombros ?


Grande texto, Diego.

Philipp disse...

Belo texto, Diego.
Além do caráter crítico do texto, te parabenizo pela maravilhosa aula de geografia urbana resumida nessas palavras. É muito importante identificar os atores que atuam modelando o espaço, seus interesses e formas de ação, sempre muito bem expressos por Roberto Lobato Corrêa no livro "O espaço urbano".
Abraços, Philipp

Felipe Quintans disse...

Muito bom, Diego. Matou a pau com seu texto preciso. Grande abraço.

Diego Moreira disse...

Simão, isso é uma honra vindo de você, meu caro! Valeu, mestre!

Cisco, obrigado pelas suas palavras. Mas acho que os muros nas favelas estarão mais para paredão de fuzilamento in loco do que para Berlim ou Palestina. Abraço!

Philipp, obrigado pela mensagem, meu camarada. O velho Lobato será sempre uma referência aqui em casa. Abraço pra você, pro Sandrinho e pra Luiza.

Felipinho, muito obrigado, malandro! É sempre uma honra ter você por aqui. Abração, meu velho!

pratinha disse...

E a politica facista, de exterminio do governo do estado e da prefeitura, continua

No caso do Santa Marta, eles fizeram a chamada ocupação pacífica... muito bem, mas poucos sabem que aquilo foi feito SOMENTE porque o heliponto que o governador usa fica bem em cima do morro, num dos acessos da rua Mundo Novo.
Os moradores de lá confirmam isso, que nunca teve tanto pouso e decolagem de helicoptero do governo.

E enquanto isso o Batman, que saiu voando pela porta da frente do presídio, ainda tá solto...

Diego Moreira disse...

Ocupação pacífica?.. São uns piadistas, não, Pratinha? Piadistas fascistas.

Abração, meu velho!

Anônimo disse...

Excelente Diego. O Estado age com barbárie,e a tendência é que tudo se barbarize.Sem esses microespaços de humanidade a tendência da sociedade e se barbarizar e exterminar completamente( vide o assassinato da jovem enfermeira e a resposta do Estado), e aqui vc faz esse papel de remar contra essa maré, tornando esse espaço um microespaço de humanização. O Estado como agente da barbárie só legitima esse Caos. A tendência nobre irmão é que o nosso querido subúrbio sofra cada vez mais com esta ausência desumanizadora, e nós,que nos criamos nessa atmosfera, teremos que fugir dela , infelizmente, para criar nossos filhos, pois a tendência é que o agente Estatal manatenha a mesma política. Saudades irmão!LH

Diego Moreira disse...

Proponho que nos esforçemos para criar mais microespaços de humanidade. A ação coletiva é sem pre muito forte. De grão em grão a gente muda um pouco as coisas.

Abraços!

Anônimo disse...

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