domingo, agosto 23, 2009

DEVANEIOS SOBRE UM PONTO DA POMBA-GIRA CIGANA

Saiu de casa decidido a perambular pelas ruas da amargura caminhando com os próprios pés. Estava completamente atordoado, com o peito oprimido, sentindo um vazio interior imenso. Parecia caber-lhe no peito um oceano inteiro de angústias e de solidão. Não tinha intenção alguma além de andar. Andar para tentar esquecer tudo aquilo que o perturbava.

Estacou no meio da caminhada quando sentiu um cheiro familiar. Não demorou muito para reconhecê-lo. Aquele era o cheiro da cigarrilha da Pomba-gira Cigana, a quem conhecera anos atrás.

Tinha conhecido a bela moça numa ocasião em que precisava de socorro material. Pediu, com o apelo dos desesperados, que moça lhe ajudasse. Não tinha fé. Tomava, ali, apenas a última opção para quem já tinha recorrido à tudo sem sucesso.

Conseguiu o que precisava. E ficou impressionado. Mas não o suficiente para ter fé na lei de pemba. Passou a ter fé apenas na força da Pomba-gira Cigana. Esteve com ela mais algumas vezes mas com o tempo acabou por deixar de acompanhá-la também.

Olhou para todos os lados e não viu absolutamente ninguém. Procurou pela fumaça da cigarrilha e nada. Só sentia o seu cheiro cada vez mais intenso e presente. Balançou a cabeça, esfregou como um alérgico a palma da mão direita no nariz e o cheiro se fez ainda mais forte.

Quando julgava-se atordoado demais, confuso demais ao ponto de ter alucinações, ouviu uma voz suave e doce:

- Boa noite.

Procurou novamente em tudo ao seu redor e não viu ninguém que pudesse estar lhe cumprimentando.

- Quem está aí? - perguntou, nervoso.

- Você sabe que sou eu. Estenda sua mão para eu ler.

Sentiu como se o tempo tivesse parado enquanto ouvia todas as verdades de sua vida serem ditas por aquela mulher. Enquanto ela lia sua mão ele só queria saber onde ela estava. Onde estava a sua cigana de fé?

--------------------------------------------------------------------

Esse texto é inspirado em uma versão feita pelo meu avô para um ponto de pomba-gira cigana. Honestamente, em com todo o devido respeito aos Guias, aos Encantados e aos Orixás, acho a versão de meu avô muito mais bonita do que a corrente cantada na maioria dos terreiros porque exibe algo da maior importância dentro da religião: o mistério.

Veja aqui e compare as duas versões. Primeiro a original e depois a versão do meu avô.

Vinha caminhando à pé
Para ver se encontrava
A minha cigana de fé
Ela parou e leu a minha mão
E disse-me toda a verdade
Eu só queria saber
Aonde mora a Pomba-gira cigana.

----------

Vinha caminhando à pé
Quando encontrei
A minha cigana de fé
Ela parou e leu a minha mão
E disse-me toda verdade
Eu só queria saber
Onde é que ela estava.

Axé!

4 comentários:

Filipe disse...

A versão do seu avô, além de ter um claro apelo de fé, é um poema admirável!
Axé!

Anônimo disse...

Que bela recriação!

Já diziam os velhos rabinos que a Criação não acabou no sexto dia... que o mundo se recria todo o tempo...

É, seu velho avó, sabia das coisas...


abraço!

Diego Moreira disse...

Anônimo, valeu pelo comentário. Passando por aqui de novo, não deixe de assiná-lo por favor. Grande abraço!

Filipe, meu camarada: o velho era um versador de primeira. De fazer ponto de Jurema parecer partido-alto. Oh, Juremê. Oh, Juremá... E inventava os versos que acompanhavam o refrão na hora. Cada quadrinha... uma mais linda que a outra. E tudo dentro da lei. Só na palma. Que saudades!

Márcio André, simplesmente EU disse...

Arrazou ! eu recebo esta pombo-gira e ela cheia de misterios e encantos, ae no ponto cantado ela canta em cima de mim ! Axé e Larôiê Exu Pombo-Gira Cigana de Fé !