quinta-feira, julho 15, 2010

QUEM VAI DIZER AO IBGE QUE É PRETO?

Neste ano de 2010 o Brasil fará mais um grande Censo Demográfico através do IBGE. Entre as inúmeras questões da pesquisa, estará aquela que há muito se faz presente: você é branco, preto, pardo, amarelo ou indígena? Democraticamente, a questão abre a possibilidade ao questionado para optar por não declarar nada.

O processo é de auto-declaração. Não é o recenseador, baseado em suas concepções e - quem sabe? - em seus preconceitos, quem escolhe a opção a ser marcada. É o entrevistado, livremente.

A formação primordial do nosso povo, baseada na miscigenação afro-íbero-ameríndia, favorece uma categoria especial: a dos pardos. Os pardos surgem da mistura entre europeus, africanos e indígenas, nas suas várias combinações possíveis. É difícil mesmo pensar em brasileiros que não sejam pardos, com exceção dos indígenas que mantêm vínculos de casamento exclusivamente dentro das aldeias e dos migrantes que chegaram ao Brasil recentemente e seus descendentes.

No entanto, a afirmação das identidades etnico-culturais produz a valorização, às vezes a supervalorização, das demais categorias. Por isso é impossível debater essa questão sem passar pelo campo das subjetividades, da forma como as pessoas se vêem - ou desejam ser vistas - e os hábitos, valores e crenças que defendem e cultivam.

Em uma análise objetiva, direta, os brasileiros brancos seriam as pessoas que são exclusivamente descendentes de europeus. Ou seja, filhos de pai e mãe europeus, ou netos cujos quatro avós são europeus, ou ainda bisnetos cujos oito bisavós são europeus, e assim sucessivamente. A mesma lógica seria válida para pretos, amarelos e indígenas. Se há mistura, recai-se sobre o grupo dos pardos, sob esse ponto de vista objetivo.

No entanto são as subjetividades que comandam esse processo de auto-definição e enquadramento em categorias de cor. E é nesse ponto que encontramos os caminhos para as distorções da realidade de cor no país. Principalmente pelos frutos deixados pelo histórico de escravidão do negro, do massacre ao índio, do preconceito contra o amarelo e das vantagens sociais dos brancos sobre os demais.

A afirmação histórica da superioridade do branco nos deixou como herança o desejo de sermos brancos. Afinal, ser branco, muito mais do que remeter ao "berço", à fidalguia, afasta as pessoas das origens "bárbaras", "selvagens", dos "não-civilizados" daqui e da África. Por isso mesmo mais da metade - 53,8% - dos brasileiros declararam ser "brancos" no último censo realizado em 2000. Um número 2% maior que o do censo de 1991.

Não é possível imaginar que, em 2000, mais de 91 milhões de brasileiros fossem 100% euro-descendentes, aqueles com 2 pais, ou 4 avós, ou 8 bisavós europeus. É evidente que isso não é verdade. No entanto é fácil entender porque tantos mestiços preferem se ver como brancos num país onde isso sempre foi sinônimo de prestígio e superioridade social.

Por outro lado, para os negros, o IBGE pergunta: você é preto? A pesquisa é sobre cor. E a cor é, realmente, preta. Portanto, não há aqui nenhuma intenção em criticar a metodologia da pesquisa. Mas é preciso ter em mente que "preto", no Brasil, é mais do que uma cor. É xingamento corriqueiro nas ruas desse país onde o racismo se esconde sob o manto espesso do mito da democracia racial.

Por isso, muito além de ter dois pais, ou quatro avós, ou oito bisavós pretos, é preciso muita auto-estima para se dizer que é preto ao recenseador do IBGE. Nessa hora é até confortável a caldeira dos pardos. Talvez por isso mesmo apenas 6,2% dos brasileiros tenham se definido como "pretos" no censo de 2000, ou seja, 10,5 milhões de brasileiros, aproximadamente.

É possível que o número de pretos seja parecido com esse mesmo, segundo aqueles critérios objetivos que demonstramos. Mas se avaliarmos as subjetividades, quantos brasileiros se declarariam pretos e não se declaram por não desejarem reforçar por vontade própria a inferioridade que lhes é imposta diariamente pela sociedade com seu racismo mascarado?

Os números dos dois últimos censos estão na imagem abaixo, tirada do site do próprio IBGE, para quem quiser analisar.


Acredito que muita gente se define com base no predomínio da cor da pele. Mestiços mais claros definem-se como brancos porque acham realmente que são brancos enquanto mestiços mais escuros definem-se como pretos porque acham realmente que são pretos. E que assim seja, que a democracia se faz com liberdade de expressão, inclusive para a declaração - ou não declaração - de cor.

Mas farei minha declaração baseada na análise da minha história familiar ou genealógica, como queiram.

Dos meus 8 bisavós, dois são brasileiros descendentes de algumas das famílias mais tradicionais e conservadoras de Minas Gerais: os Rezende e os Dutra de Moraes. Ambas têm origem açoreana. As duas, repletas de coronéis, barões e latifundiários de brasão e amigos influentes. O conservadorismo dessas famílias limita bastante as chances de terem ocorrido miscigenações com pretos e indígenas. Meu avô materno, filho desse casal, enfrentou o racismo dos ancestrais quando escolheu casar-se com uma mulher de cor preta.

Com essa mulher, surgem meus dois bisavós pretos. Minha afro-descendência mais direta. Mesmo sem ter conhecido nenhum desses ancestrais, parece que foi deles que herdei a maior parte dos meus gostos. Afinal eu gosto mesmo é de samba, capoeira e de macumba.

Pelo lado paterno tenho outros dois bisavós europeus, um português e uma espanhola. Meu avô paterno, filho desse casal, era um brasileiro ibérico, portanto e papai é 50% assim também. E os últimos bisavós são brasileiros, um filho de portugueses (da família Porto) e outra mestiça, com mãe indígena.

Portanto são cinco euro-descendentes, dois afro-descendentes e um ameríndio-descendente. E eu me reconheço como fruto dessa mistura que formou o nosso povo. Nessas condições, não há outra opção a marcar senão a dos pardos.

No entanto, quando nasci, constava na declaração do hospital que eu era branco, sem prévia consulta aos meus pais. O mesmo ocorreu com meu filho, igualmente sem que eu e minha mulher fôssemos consultados. Minha esposa, apesar da pele claríssima, também tem afro-descendência. Seu pai era primo de Nei Lopes, que é sambista, escritor, historiador, filólogo, lexicógrafo e um dos maiores pan-africanistas do Brasil, além defensor das ações afrimativas para os negros no nosso país.

Isso demonstra que embora raças não existam geneticamente, a noção de raça opera em nossa sociedade e que as pessoas identificam raças nas outras pessoas. E é dessa identificação racial que nasce a possibilidade do racismo, da atitude discriminatória que, históricamente, atingiu majoritariamente os negros desse país.

Mas a pergunta que se exibe no título permanece. Quem vai dizer ao IBGE que é preto? De 1991 para 2000, o número de "pretos" aumentou em função da clara busca por valorização da identidade afro-brasileira conduzida pelo movimento negro do país. De 2000 pra cá tivemos todo um conjunto de discussões que abarcaram essa identidade, especialmente às ligadas às cotas para negros nas universidades públicas. Mais do que discussões, tivemos oito anos de políticas públicas federais comprometidas com a reparação das desigualdades criadas pela escravidão.

Diante disso surgem mais questões. Será que essas dicussões foram suficientes para trazer mais negros para a defesa das ações que afirmam sua identidade? Será que se produziu uma elevação da auto-estima dos negros do país? Teremos mais brasileiros se reconhecendo como pretos em 2010?

A conferir. Até!

8 comentários:

Henrique disse...

Até que enfim... Excelente texto, já achava que esse negócio de twitter tava mexendo com sua escrita. Muito bom Diegão.

José Sergio Rocha disse...

Boa ideia. Vou dizer o mesmo.

Wesley Garcias disse...

eles vieram aqui em casa
e todo mundo aqui falou que era pardo
porque PRETO e demais
a pessoa e NEGRA
isso e muito discriminador

Diego Moreira disse...

Wesley, veja o que escrevi em um dos parágrafos:

- Por outro lado, para os negros, o IBGE pergunta: você é preto? A pesquisa é sobre cor. E a cor é, realmente, preta. Portanto, não há aqui nenhuma intenção em criticar a metodologia da pesquisa. Mas é preciso ter em mente que "preto", no Brasil, é mais do que uma cor. É xingamento corriqueiro nas ruas desse país onde o racismo se esconde sob o manto espesso do mito da democracia racial.

Ou seja, Wesley: tecnicamente o IBGE está certo. A cor é preta. O termo negro deriva de uma identificação cultural. Eu reconheço o quanto o termo preto pode ser agressivo. E muita gente se declara como pardo exatamente por não concordar com o "preto". Enfim, o que penso está aí no próprio texto.

Abraços!

molica disse...

É que, para ao IBGE - negro é a soma de pretos e pardos. Um critério meio discutível, por sinal. Até porque, no dia a dia, negro é sinônimo de preto (ainda que a primeira palavra não tenha o peso eventualmente discriminatório da segunda). Na prática, o critério aumenta o número de negros. Mas, enfim, seria bom que a palavra 'preto' perdesse a conotação negativa que ainda pode permanecer. A mesma palavra pode ser dita com diferentes intenções - a palavra 'judeu' também já foi usada de forma discriminatória.
abs.

Diego Moreira disse...

Sim, aliás muitos critérios adotados pelo IBGE são discutíveis. O que fica evidente é que pessoas que se reconhecem como negros-pretos não se declaram como pretos por julgar que isso está legitimando a discriminação. Então correm para o grupo dos pardos. E taí uma bandeira pela qual luto diariamente: a que prega o fim do racismo e a melhoria da auto-estima das pessoas que sofrem algum tipo de preconceito que as inferioriza.

Abraços!

guta disse...

Excelente texto! Eu entrei neste blog porque quero participar de um edital de cultura negra da Funarte, na qual o proponente tem que, no ato da inscrição, declarar-se preto ou pardo para poder participar. Isso me causou um certo estranhamento e um monte de dúvidas. Explico: sou fotógrafa e há 6 anos tenho uma pesquisa em um terreiro de Candomblé. Inclui milhares e milhares de fotografias, um documentário, um blog, uma pesquisa musical, um livro publicado, uma exposição no exterior... E continua... Além disso, como você, amo samba e macumba! Tanto que virei mãe-de-santo!! Mas se na alma minha pele é negra, não posso afirmar que dizem o mesmo sobre a minha pele do corpo! Tenho sangue europeu e negro. Um avô negro, que eu nunca conheci. Mas enfim... Seu artigo esclareceu totalmente minha questão: sou parda, e vou participar!! Obrigada

Diego Moreira disse...

Obrigado, Guta. Axé!